Uma relação entre a sessão de desenho de Rubens Espírito Santo e o teatro grego
CCS, 13 de janeiro de 2018
De forma introdutória e absolutamente resumida, aqui estão algumas noções apenas para embasar o que precisa ser refletido sobre alguns aspectos da sessão de desenho de sexta de Res.
Catarse
A catarse (κάθαρσης) é um efeito de um processo de purificação.
O radical da palavra catarse é catar (κάθαρ) e ele indica: pureza espiritual, seja ela por meio de rituais ou por medicamentos; asseio, higiene de um indivíduo.
A vontade de catarse tinha sua origem no medo do miasma (μιασμα): conspurcação, impureza, mácula. Acreditava-se que essa mácula (um assassino por exemplo tem uma mácula) atravessava gerações, sendo algo hereditário. A catarse então era um processo pelo qual a pessoa iria se limpar desta mácula. Os meios mais comuns de se purificar eram por meio da água, fogo ou sangue (sacrifício).
O papel social do ritual a Dioniso, o deus do vinho, da festa, da fertilidade e da realidade concreta era justamente catártico. Não à toa, o teatro grego se desenvolveu a partir deste culto. As máscaras usadas em encenações trágicas tinham a função de aniquilar a identidade dos atores a fim de transformá-las; a individualidade era sacrificada e ofertada a Dioniso. Para Nietzsche, o desenvolvimento da arte está totalmente ligado à dualidade entre Dioniso e Apolíneo.
Mímese
Platão e Aristóteles viam as artes miméticas de formas diferentes: para Platão, a vida era uma cópia do real, que era o mundo das ideias; a arte como imitação da vida, era portanto imitação da imitação, sendo então muito mais distante da realidade que a própria vida. Ele reprovava a arte; criticava veementemente a tragédia. Não é à toa que expulsou poetas da República (não todos: os poetas épicos podiam ficar) pois eles iriam enfraquecer o controle da razão dos espectadores que, ao presenciar uma tragédia, iriam agir motivados pelas paixões e ir contra as prescrições da razão [1].
Ao contrário desta visão de Platão, a realidade para Aristóteles era todo o sensível, e não algo fora dele. A imitação, portanto, era algo extremamente benéfico pois é pedagógico, pois ensinava a ver possibilidades reais que estão em latência. Aristóteles privilegia em seus estudos a tragédia, uma das formas que provoca o efeito da catarse e que, dentre as formas miméticas, mais provoca elementos catárticos, como sentimentos que educam e purificam em oposição ao poema épico (autorizado por Platão a ficar na República) como Odisséia ou Ilíada, por exemplo. Lembrando que quando digo tragédia, estou me referindo à encenação trágica, que é sempre baseada em um texto escrito, como Édipo. Aristóteles acreditava que o espetáculo é secundário em relação ao texto.
Posto este sentido da palavra catarse, temos que o espectador da tragédia nunca foi o que entende-se hoje pela palavra espectador como alguém passivo. A encenação da tragédia, em um espectador, gerava nele impressões absurdamente dolorosas que levavam-no a um gozo: algo conjugado ao prazer e à dor, ultrapassando estas noções.
Freud também teorizou sobre o gozo artístico presente nas representações teatrais. Para ele, este gozo trata-se de uma transformação, da superação da dor (sem que haja sua eliminação) [2].
Assim, Rubens Espírito Santo elevou o caráter de suas sessões de desenho a níveis realmente espirituais, onde o elemento principal, como diz Aristóteles, não é o objeto final, mas o poema que rege a sessão, o desenho, a semana, a vida de Rubens e consequentemente a de seus discípulos. Me pergunto que poema é esse, que tragédia é essa que rege cada sessão enfrentada por Res? Este poema me parece uma fonte infinita de onde ele tira força para atuar neste teatro dionisíaco; que máscaras são essas com as quais Res funde sua individualidade, já aniquilada há muito tempo, para constantemente fazer esta oferenda no desenho?
Sinto que o que ocorre na sessão é um ritual de abertura de portas que se antes encontravam obstruídas pela razão, tão querida a Platão e à organização da sociedade ainda hoje — não apenas a sociedade em que vivemos mas aquela a sociedade cujo regime é altamente autoritário e que rege o sentido do sangue que corre nas minhas veias. No cotidiano, a visão destas portas trancadas me geram apenas uma esmagadora impotência — de apenas estar diante de uma porta fechada — a impor que a paixão não poderia ser a chave para abri-la. Na sessão, é como se essa paixão encontrasse sua saída — por baixo da porta, derrubando-a ou atravessando-a numa força descomunal — se posicionando de forma completamente independente da fechadura da porta. Portanto, estar numa sessão de desenho de Res é aquilo que Platão não quis aos cidadãos da República: ser transformado por ela; não servir aos ditames da cidade ideal, mas ao poema que me rege.
Concussão
Rubens então não rege suas ações, mas são elas regidas por um poema (lembremos que a definição que Aristóteles dá à tragédia é a imitação de uma ação). Alguém poderia dizer então que estas ações são como as de um fantoche que vive a fantasia apenas num curto período de tempo quando está nos palcos. Porém, é justamente o contrário que se dá: Rubens se jogou mesmo no núcleo da própria vida, e o que pensamos ser um palco fantástico é na verdade uma arena com leões famintos. E para estar inserido nesta vida, pagou pelo ingresso com a própria vida, adentrando o risco de ser comido pelos leões. Diferente de uma pessoa na periferia da própria vida, que mal chega a ter o caráter ativo daquilo que seria um espectador para os gregos, Rubens coincidiu sua vida com aquilo que rege a vida — aí a figura de uma marionete faria sentido pois, através de um fio, ela está próxima daquilo que a movimenta: teatro ou arte como a própria realidade e não como encenação (Artaud? Ibsen? — estudar).
Por isso, os tiros de arma usados neste desenho não são superficiais ou cênicos — Rubens é uma pessoa antes de tudo perfurada por estes tiros — e não adia, mas precipita sua própria ruína assumindo este corpo perfurado — o que faz com que os buracos não sejam mais atravessados somente por tiros — mas também por luz — e é isso que há aqui: o retrato de um corpo lesionado — ativado pela concussão, por uma pausa na racionalidade cerebral, responsável pela ativação da claridade de um corpo em expansão — seu limite não mais impede o que vem de fora — nem impede de sair a luz que vem de dentro — obrigando seu derredor a estar iluminado — e aqui, o crime se identifica com o castigo: a bênção de dar luz e a maldição de recebê-la.
Felizes são aqueles cuja vida
transcorre isenta de todos os males,
pois os mortais que um dia têm os lares
desarvorados pelas divindades
jamais se livrarão dos infortúnios
por todas as seguidas gerações [3].
[1] Platão, A república, Ed. Perspectiva, livro X 606b, pág. 393
[2] Freud, Para além do princípio do prazer, p. 29
[3]Sófocles, Antígona em A Trilogia Tebana, tradução de Mário da Gama Kury, Rio de Janeiro Zahar, 1989
Bibliografia
Aristóteles, Poética
Sófocles, Antígona
Dodds E. R., Os gregos e o irracional
Christiani Margareth de Menezes e Silva, Catarse, emoção e prazer na Poética de Aristóteles, tese de doutorado PUC-Rio
Platão, A República