Uma pergunta

CCS — Caroline Costa e Silva
3 min readJun 15, 2021

Navegar é preciso; viver não é preciso.

Fernando Pessoa

Como uma amante da língua portuguesa, gostaria de investigar essa frase, pois percebo que a língua portuguesa permite que ela tenha mais de uma leitura. Fernando Pessoa a usou em seu poema “Navegar é preciso”*, ao recuperar esta frase de Pompeu: “Navigare necesse; vivere non est necesse”, quando este dita aos marinheiros que recusavam viajar durante a guerra.

O significado da palavra “preciso” pode ser os seguintes:

1. Verbo “precisar” conjugado na primeira pessoa do singular, cujo sentido é o de ter necessidade de algo.

2. Substantivo masculino: Feito ou determinado com absoluto rigor e precisão; exato, certo, definido.

Gostaria de explorar o sentido da palavra “preciso” aqui além daquele usado por Pessoa, ou seja, a palavra “preciso” não como verbo, mas como o substantivo “rigor”, “exatidão”, “precisão”. Neste caso, poderíamos reescrever a frase:

Navegar é exato; viver não é exato.

Bom, como prosseguir daqui? Por que quis vir parar aqui? Não quero parar aqui, quero partir daí: a contradição exposta nesta nova formulação me interessa, pois os dois pólos da frase igualam palavras cuja identificação não é óbvia; num primeiro olhar, elas parecem opostas. Não é intuitivo pensar que navegar seja algo exato, pois justamente navegar se parece com uma ação que implica se entregar a algo maior e mais forte que você, a estar sujeito ao seu controle, a suas armas, a aceitar que seu corpo vá onde ele, o mar em que se navega, decida.

O ponto e vírgula do segundo pólo da sentença afirma uma comparação entre navegar e viver, ele parece ocultar em si um “enquanto”: “navegar é exato, enquanto viver não é exato”, mostrando que navegar, em toda sua inexatidão, ainda assim é algo mais exato do que viver — verbo que, posicionado nesta justaposição diante do verbo “navegar”, parece ser mais exato — ressaltando que, nesta pequena frase, como está tudo sendo definido, o sentido exato da palavra “exato” ou “preciso” tampouco é exato. Logo, não podemos nos assegurar que sabemos qual é a exatidão comportada na ação de navegar.

Indo além desta primeira percepção desvelada, esta formulação me grita:

Se você acha que vive, e, por achar que isso é seguro, você não navega, agora sabendo que viver não é exato, mas que navegar é mais, por que você não navega? Ou seja, sabendo que estar fora de suas próprias regras implica numa exatidão muito maior do que suas leis individuais, por que então você luta contra a corrente do mar? Por que você não se entrega a ela? Por que você não sai de sua zona de conforto? Por que você não começa a nadar? Por que você não ousa abrir a porta, aquela cujo buraco da fechadura você espia tanto? Por que você não se rende ao calor da boca do mar contrastando com sua pele ainda fria e inexperiente, por que não se rende à tremedeira das suas pernas, ao calafrio da espinha, que reservam em si maior cálculo do que todas as equações já timidamente formuladas por você até hoje?

* Navegar é preciso

Fernando Pessoa

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

“Navegar é preciso; viver não é preciso.

Quero para mim o espírito desta frase, transformada

A forma para a casar com o que eu sou: Viver não

É necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande, ainda que para isso

Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso

Tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho

Na essência anímica do meu sangue o propósito

Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir

Para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

CCS, 18 de abril de 2021

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