Um funil

CCS — Caroline Costa e Silva
5 min readJun 25, 2018

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Sobre a tradução de um poema de René Char por Rubens Espírito Santo

[…] a obra de arte, além do caráter de coisa, é ainda algo de outro. Este algo de outro que está nela constitui o artístico. A obra de arte é, de certo, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de outro diferente do que a mera coisa propriamente é, άλλο αγορεύει [άλλο=outro, αγορεύει=diz]. A obra dá a conhecer abertamente um outro, manifesta outro: ela é alegoria.

Heidegger, A origem da obra de arte, Edições 70, §9

[…] a escrita está agora ligada ao sacrifício, ao sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de ser representado nos livros, já que se cumpre na própria existência do escritor.

Foucault, O que é um autor?,UFMG, pág. 36

Na tradução de Res do poema Je me voulais événement de René Char, a seguinte frase me chamou atenção:

A cabeça sacrificada que interditou o amuleto que eu trazia comigo inadvertidamente.

Res, Tradução do poema

Je me voulais événement de René Char

Ela me chamou atenção por estar, aparentemente, incompleta. A cabeça sacrificada seria o sujeito da frase; porém, não há verbo de ação para ela, pois todo o conteúdo do período que interditou o amuleto que eu trazia comigo inadvertidamente é um aposto que serve apenas como uma explicação de que cabeça é essa; reescrevendo, teríamos:

A cabeça sacrificada, aquela que interditou o amuleto que eu trazia comigo inadvertidamente, …

Colocada desse modo, fica claro que a cabeça sacrificada não completa sua ação, que há uma expectativa não respondida depois do inadvertidamente; a cabeça sacrificada, teoricamente, não faz nada (mesmo que ela tenha interditado o amuleto que eu trazia, esta ação, estruturalmente, é apenas uma referência de alguma ação acontecida em algum momento passado). Talvez o que quer que seja a ação desta cabeça não seja capturável por palavras — mesmo que um poema tenha como princípio transformar coisas invisíveis em palavras — talvez isto não seja apenas visível mas irreconhecível — e sua lacuna aponta para a necessidade de criação de corpos para estas ações — que podem residir em novas palavras capazes de completar um sentido de toda inexauribilidade uma frase inexprimível.

No poema original, a frase é:

La tête de mort qui, contre mon gré, remplaçait la pomme que je portais fréquemment à la bouche, n’était aperçue que de moi.

Sua tradução literal é:

A cabeça da morte que, contra a minha vontade, substituiu a maçã que eu frequentemente coloquei na minha boca, só era visível para mim.

No poema original, a cabeça da morte é o sujeito da ação de ser visível para mim; a parte que se encontra após o que e entre vírgulas é uma explicação desta cabeça (contra a minha vontade, substituiu a maçã que eu frequentemente coloquei na minha boca). Porém, ela claramente ocupa o papel principal de ser visível para mim.

No poema de Res, a cabeça sacrificada não pratica qualquer ação, ela é um sujeito sem ação — isso seria possível? De acordo com as normas gramaticais, não, pois sujeito é aquele com o qual o verbo principal concorda. Se não há verbo principal, então não há sujeito e a cabeça sacrificada torna-se algo sem categorização nesta frase — que já acredito não ser mais exatamente uma frase, pois esta reivindicaria um sentido completo. Aqui, a frase não precisa ter sujeito e verbo para ter sentido — a frase não precisa ter sentido para ser uma frase — para existir; não tendo sentido, ela apenas é algo que tampouco se denomina frase, tornando-se incapturável pela gramática. Ou ainda, incapturável por qualquer circunstância fixada naquilo que nossas crenças acreditam ser razoáveis; a frase permanece num território onde aquilo em que se acredita normalmente não funciona; deste modo, os fatos de uma frase mesmo sem sentido podem atravessar o mundo, que já não encontra-se mais blindado pela protetora camada credora que cultivamos, também, mesmo sem saber, inadvertidamente — e aqui, isto não constitui paradoxo — do mesmo modo que uma cabeça, mesmo sacrificada, continua agindo, mesmo que suas ações não sejam nomeáveis — continua viva; a poesia, assim como as ações de Res, concluíram o inconclusivo trabalho de ser o mais poderoso e mais nebuloso dispositivo, transformando a entidade mítica capaz de governar não só este ou aquele grupo de palavras mas de quaisquer elementos constituintes da consolidação daquilo que não sabe ser construído: nosso tédio, nossa imaginação, realidade e reconhecimento — para introduzir-nos num movimento, por excelência, mais real que todos os governantes de nosso pensamento: a própria realidade não ordinária, que não possui governante — ou apenas aceita como governantes aqueles que já não têm essa preocupação — nem nada governa.

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Eu já não estava mais aqui neste mundo, então, de tanta presença esmagadora entre meus artelhos.

Artelhos: Ponto de junção entre dois ou mais ossos; articulação.

Esta palavra, neste contexto, é muito significativa; ela indica coisas que, também neste contexto, já teriam se perdido caso estivesse sendo operada aqui uma lógica linear de coisas: poder de articulação — indicando o oposto do que se espera quando o sentido de coisas não está mais no topo hierárquico numa escala de considerações — e ossos juntos articulados, indicando o oposto do que se espera de um corpo sem órgãos; ou seja, dois tipos de articulação são feitos por esta presença esmagadora. E o fato dela, capaz de fazer ambas articulações, fazer também com que o eu da frase não esteja mais aqui neste mundo é mais uma evidência do assombro deste corpo desencadeado mas completamente capaz de compor encadeamentos não só de frases mas também de imagens — lugares — pessoas — tempos — vidas — que só o são para serem, depois, por obra sua — ou da herança de um vendaval –, desencadeados.

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Não tardou para meu constrangimento insuflar em meu peito um órgão que não havia antes ali.

As expressões não tardou e órgão, estando sob jurisprudência da alegoria, não podem ser entendidas aqui em apenas um de seus sentidos possíveis — o literal; já que constrangimento seria uma ação que tiraria liberdade de ação de alguém, e não que criaria uma; quem sabe os direitos inatos das palavras estão sendo aqui questionados — aqueles que dizem que seu significado depende do contexto — e que, num estrangulamento com funil, elas possam enfim reivindicar pelo direito de isolamento de toda sua mortalha sígnica e, ao assumirem ser medrosas da noite, elas possam mover-se até cavarem numa terra tão fofa e tão molhada um buraco que, em letargia de tartaruga, mova-se por si só; nele triunfa, lerdo, um mundo outro onde amanhece, antes de todas as coisas que não outras, antes que estale a batida de qualquer par de asas, a escura manhã da criação.

CCS, 13 de março de 2018

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