Um Desenho vivo

CCS — Caroline Costa e Silva
2 min readJun 28, 2018

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Série Usener XII — 1º Estudo para uma gravura autorretrato, Rubens Espírito Santo, 7 de abril de 2017

O desenho de Rubens tomava um rumo incrível, como de habitual, mesmo a olhos não educados como os meus. Muitos procedimentos superficialmente conhecidos por nós foram feitos — o retrato verossímil feito pela Navarro do Gabriel, seu apagamento, um novo desenho feito com borracha, atividade de maçarico.

Após Rubens tê-lo desbastado completamente aquilo que eram resquícios de um desenho ameaçado por um gás de maçarico, ele parecia ser algo moldado por luz, como se desse forma não à figura que nele cabia, mas à luz que por ele passava. O desenho vazava aquilo que perpassava por ele, a luz de um fogo condensado, dum incêndio que não deixara nada queimado mas que avisara a todos sobre sua presença.

A figura vazada que insistia em sobreviver ali — ainda de pé no papel — parecia a de uma pessoa que, após ter passado horas num interrogatório, resiste apenas em fragmentos cujas máscaras foram violentamente derrubadas; uma pessoa recém nua de verdades ou afirmações, pois fora obrigada a desistir delas.

O desenho era mais que um amontoado de procedimentos — um aviso, a presença de algo que passou — mas não totalmente. Rubens o cobriu com tinta — pinceladas grossas que se acumulavam umas sobre as outras como as tão sonhadas cobertas de um mendigo que passa frio. Os pontos de interrogação se tornaram mais explícitos na minha cabeça; eles são quase uma condição para ver Rubens desenhando. O desenho, antes iluminado, agora estava totalmente coberto — como iria vê-lo?- perguntava eu em minha ignorância. Como quem coloca um manjericão em cima do molho de macarrão, Rubens virou o pincel e traçou algumas linhas, mínimas o suficiente para que da massa saísse um rosto vívido, não vazado, mas insuflado de ar por dentro; Rubens o desbastou ao contrário; apontando para ele o soprador numa tentativa de acelerar seu processo de secagem, bolhas geradas pelo ar quente surgiam de sua superfície, suavemente esculpida por Rubens — um agente aparentemente externo do desenho — que o faz nascê-lo de dentro do papel, respirando e expirando.

É possível dizer que Rubens nasceu no desenho, assim como ele nasce em todos os seus desenhos; que ele se virou do avesso e se pôs numa massa de tinta; como uma criança que, com um graveto elabora um rosto na neve recém caída do telhado, construindo assim um mundo; Rubens imprimiu digitais que formam uma pessoa — ele -. Essas digitais lhe foram há muito impressas e ele não pode retê-las para si.

O meu desejo após ver este desenho não é de entendê-lo, mas de estar tão presente quanto ele.

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