Todos os dias: Para o Mestre
Me reconheço
imagem passageira
presa de um ciclo
imortal
Giuseppe Ungaretti, Céu claro, 1918
Igual ao mar que irrequieto e brando
De longe mostra e esconde
Uma ilha fatal,
Com múltiplos enganos
Acompanhas a quem não desespera, à morte.
Giuseppe Ungaretti, Sereias, 1923
Todos os dias
você me lembra
como estou
desesperadamente necessitada –
inclusive pela minha negligência de nem sempre me lembrar de que porra preciso
[tanto –
e talvez só precise lembrar que
não preciso de tantas coisas assim
Todos os dias
Você me lembra
de dizer bom dia
aos meus demônios –
não conheço todos mas –
(não importa o que eu queira) –
eles não têm tantas novidades assim
Todos os dias
Você me lembra
que estes ignóbeis poemas
não são sementes mas cereais matinais
feitos de mentiras cuja data de validade já passou
precisam ser jogadas fora –
como quando se tira
o lixo ao fim do dia –
diferente do que se pode acreditar –
talvez eu não tenha tantas sementes assim
Todos os dias
Você me lembra
de que não há tanta diferença assim
entre estar feliz ou triste –
ainda são o mesmo
usando roupas de diferentes cores -
e para diferi-los tenho de mudar
o que está dentro deles -
nem que eu use
um uniforme azul deliberadamente comum
Todos os dias
Você me lembra
da distância grande
entre minha cabeça e meus pés –
Não consigo acreditar –
eles são tão gelados –
se eu pudesse ao menos esquentá-los
sem me mexer e esquentá-los –
como sua sombra é quente –
e igualmente
lentamente
mover minha cabeça
e esfriá-la –
esfriá-la mesmo
Todos os dias
Você me olha
como se estivesse
do topo de uma Montanha –
se eu pudesse
forrar minha cama com um lençol
costurado de pedaços de céu
eu iria subir em cima dela
e talvez ver o que você está vendo –
mas não dá — não é assim
Todos os dias
Você me olha
com um olhar de sombras
da cor de tudo que dá medo:
da cor do mar devorador –
da cor do céu em tempestade –
da cor da noite sorrateira –
rastejante que se enrola
nas cortinas das janelas e fala baixo:
vem e não volte.
Será que um dia poderei entender que você é aquilo que está na expressão todos os
[dias
aquilo que não se oprime mesmo quando se põe debaixo da asa de um pássaro
[faminto
aquilo que não se oprime mesmo quando está morando na calçada
aquilo que não se oprime mesmo quando é um imperador
aquilo que não deixa ser encapsulado por um grito entalado — mas enlata o grito
aquilo que sabe que Esperança é uma mulher que anda numa rua sem saída e que não conhece muitas ruas
mas seus pés estão quentes e sempre em movimento –
ela não para de andar –
sem cansaço –
à procura de um motor –
que não é só seu:
ela esqueceu seu nome
CCS, 4 de dezembro de 2017