Sobre o poema Confissão
Para Sor Juana Inêz de la Cruz de Rubens Espírito Santo
CCS, 6 de novembro de 2018

Sobre o poema Confissão [1] de Rubens Espírito Santo gostaria de começar a expor algumas possibilidades de leitura para a seguinte frase:
[…] Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso […]
Antes de começar, porém, é necessário um breve esclarecimento sobre a linda palavra enlevo. O dicionário dá como um possível sentido a palavra êxtase e, para esta palavra, Santa Teresa d’Ávila dá os seguintes:
- União;
- Arrebentamento;
- Elevação;
- Voo do espírito;
- Arroubo.
No capítulo 20 dO livro da vida, Santa Teresa d’Ávila confessa que, apesar de todos essas palavras serem uma coisa só, ela gostaria da ajuda de Deus para poder entender, ainda assim, sua diferença. Ela diz que o acontecimento destas palavras se dá no quarto grau da oração, ou quarta água, um estágio muitíssimo alto de oração. Os que nele chegam não chegam por merecimento, mas sim pela bondade de Deus. São muito poucos os que nele chegam; só do segundo grau, o grau de quietude, quase ninguém passa que dá vergonha dizer, diz ela. (Neste grau, o que devem fazer o que chegam, é agir sem ruído). Neste capítulo, ela tenta explicar o que acontece quando se está na divina união e que, na elevação, a alma sobe como algo que precisa sair de uma fogueira que arde muito forte e que cresce impetuosamente em seu corpo. No quarto grau, a alma sente que não está morta de todo — mas está morta ao mundo — e como ainda tem os sentidos, os usa para perceber que ainda está nele e sentir sua solidão, e aproveita-se do exterior para fazer entender o que sente. Acredito que o quarto grau tenha muita similitude com a relação de Rubens e seu desenho: é como se desenhar fosse uma ação para entrar na realidade, ou ainda perceber-se nela, já que a sua realidade mesma é absolutamente outra — uma ficção fantástica e irreal. E acredito que a frase […] Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso […] só pode ser escrita por quem experienciou este enlevo, por quem vive esta ficção — seja de que forma for — inclusive a própria escrita desta experiência possa ser essa experiência. (Isto parece uma rua sem saída…) Acredito, porém, que, sendo ou não o desenho ou a escrita essa experiência, talvez não tenha como tateá-la, onde e como ela começou; sei que ela é única, histórica e longínqua.
A frase
[…] Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso […]
possui as seguintes possibilidades de leitura:
- Possuído de enlevo desde a infância, agora suspenso
- Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso
- Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso
O verbo possuir, em alguns casos, pede algum complemento. Aqui, o verbo está conjugado no particípio, então ele pode pedir um dos seguintes tipos de complementos: um que venha precedido da preposição de ou da preposição por. Ou seja, pode-se estar possuído de, que indica quando se tem tem algo, ou possuído por, que indica quando se é apoderado por algo. Como a frase original está aberta, podem ser ambos os casos. Então, nem (1) nem (2) nem (3) está exatamente certo ou errado, mas são possibilidades de leitura.
Em (1), há uma inversão da frase original. Com o complemento de enlevo perto do verbo no particípio possuído, fica mais simples de analisar sua relação. Esta inversão revela que o narrador, desde a infância foi possuído de enlevo, o que é, por si só, uma construção decerto muito misteriosa: como pode-se possuir algo que é, por excelência, algo fugidio, que indica sair de si (não fugir de si), para ir de um encontro ao totalmente outro? Como pode-se possuir, há tanto tempo, a capacidade de algo que precede (ou que é ela mesma) a união com o divino, sendo uma pessoa? Esta primeira possibilidade de leitura leva diretamente à uma outra frase do mesmo texto:
[…] Faça de mim algo sem permeação com o senhor […]
O narrador aqui pede o impossível: que não haja mais diferença entre ele e o senhor que são, essencialmente, coisas de matérias diferentes. A eliminação da diferença é dada pela negação da palavra permeação, substantivo do verbo permear, que significa justamente atravessar. Então, ele não quer mais ser atravessado, pois algo só pode ser atravessado por algo se for diferente dele, como um copo de água atravessado por um raio de luz; se este copo estivesse cheio de luz, não daria para distinguir o raio que entra dos raios nele contidos.
Continuando as possibilidades de leitura da frase Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso, há ainda outras duas:
2. Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso
3. Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso
Em (2), o narrador diz que está possuído e, como não complementa esse verbo, entende-se implicitamente que ele esteja possuído por algo, como entendemos normalmente esta expressão. O enlevo, ao lado da palavra infância, refere-se a ela, ou seja: a construção (2) diz que a infância é algo de enlevo. Isto lembra algumas coisas essenciais, inclusive em relação à arte: a capacidade da criança não distinguir realidades, por exemplo, quando ela faz, com uma dobradura de papel, um barco, ela não está com intenção de representar um barco, mas de estar, mesmo, neste barco, e a realidade em que ela está se converte na realidade em que só existe este barco — o que me lembra a capacidade de ficcionar. Além disso, ou, concomitante a isso, a capacidade de ficcionar que existe na infância mostra sua proximidade à tragédia — Nietzsche dizia que, no último estágio das metamorfoses do homem, depois do camelo e do leão, está a criança, que inaugura a tragédia: para brincar o brinquedo dos criadores é necessário ser uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade –; sua proximidade à origem — à verdade — à poesia — ao erótico mundo dos deuses, ou seja, ao mundo não-natural, ou seja, artificial, ou seja: à gratidão mesma de viver — sem criar gratidão, naturalmente, eu não sou uma pessoa que tenha merecimento mesmo de coisa alguma — e sem estar em estado de graça, viver é impossível –; ter o ouvido colado à vida — à delícia de saber-se sujo e só e ainda assim deslizar ou subir o morro dos ventos uivantes com a mesma intensidade — (existindo ou não companhia para isso, inventa-se uma — existindo ou não morro para isso — inventa-se um morro; um vento; um uivo — a união dos três sou eu — eles estão em realidades terrivelmente distantes, ou, pior: eles existem em realidades desniveladas — existindo ou não, eu morro para encontrá-las, para achar o caminho de volta à casa — tento pegar meus pedaços espalhados pela rua — por favor, Senhor!).
Há, ainda, uma terceira possibilidade de leitura da frase:
3. Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso…
Pode-se ler a expressão agora suspenso como se ele estivesse se referindo ao próprio enlevo. Porém, ele pode se referir ao narrador, como em:
Eu, que fui possuído desde a infância de enlevo, agora estou suspenso
O que é estranho é que o início da frase já indica uma suspensão bruta: em (1), alguém possuído de enlevo — este alguém só pode estar suspenso — só pode ter tido sua vontade aniquilada — para estar próximo de algo tão fugidio como o enlevo; em (2), o narrador já expressa que foi possuído por algo, ou seja, que foi suspenso de si mesmo, que teve suas faculdades distanciadas desde sua infância que não é uma infância qualquer, mas de enlevo, como dito acima — só de pensar já me sinto excitada. Mesmo depois de duas possibilidades de leitura que afirmam uma suspensão, esta terceira ainda afirma uma outra, que só se dá agora.
Após essa cansativa tentativa de análise, eu confesso que não faço mesmo ideia de que coisas ele fala. Não fazendo ideia alguma — não conseguindo pensar em nada — não conseguindo enxergar direito tendo os olhos tão cheio de lágrimas que, talvez sejam mesmo meu olho — talvez meu olho seja atrofiado e precise delas para que elas enxerguem através dele — Santa Teresa dizia uma água atrai a outra, a água da lágrima atrai a água da oração — talvez elas saiam, mesmo que eu as arranque por dentro, pois elas sejam meu órgão de visão — talvez eu não seja nada sem elas e elas, por sua vez, não existam sem algo que é sem si mesmo: o mestre.
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[1] Confissão
Para Sor Juana Inês de la Cruz
De Rubens Espírito Santo, 4 de novembro de 2018
Senhor Deus, faça de mim um monge encarcerado na própria realidade cotidiana
Faça do meu corpo um descorpo
Sem sangue nem nenhuma forma de opção sexual ou gênero
Faça de mim algo sem permeação com o senhor
Que minhas veias secas de sangue filtrem o suor da Cruz para viver
Irmã Juana Inês de la Cruz
Ore pelo que resta de mim neste mundo, este descorpo incorporado, Possuído desde a infância de enlevo, agora suspenso, irmã me tenha junto de vós. Que estas palavras não sejam mais deste mundo, mas que inaugurem minha estadia no coração do universo. Que a sina que me atravessa recomponha meus ossos em marfim para que eu possa estar em comunhão com o seio da Terra Santa. Possa também fincar origem de louvor e consagração no vórtice da tempestade, arrastado de um lado para outro, sentir o vento gravando em meu peito o nome divino que vim suportar.