Sobre o filme Blow up de Antonioni
Quando pedir se torna agradecer
CCS, aula de segunda, 11 de setembro de 2017
Um fotógrafo que precisa de uma máquina não apenas para fotografar — mas para respirar. Para se afirmar enquanto a pessoa que ele queria ser ou até mesmo que ele era — mas não era ainda — aquela que ele se impedia de ser. Como se a cada clique que ele desse, ele suplicasse algo para a vida — mais vida, talvez — menos do que ele queria — ou mais do que ele poderia ter — uma vida que ele não tinha — uma coleção dela em miniatura depositada num negativo. Cada clique era um pedido de ajuda — uma manifestação da sua tão presente carência — da ausência de tudo que ele aspirava ser.
O olho do fotógrafo era emprestado da câmera fotográfica — ela via e não ele — ele via por procuração — ele via apenas através de sua lente. Após sua intensa investigação em fotografias que testemunharam um assassinato, ele profere as confusas e sequentes falas: acabei de ver um assassinato e, logo após ser questionado sobre o que viu, eu não vi nada. Sua aparente contraditoriedade mostra, também, esse empréstimo tão sério — esse acordo tácito mediante fotógrafo e máquina fotográfica.
Me parece que quem pede, quem faz a lição de casa, quem arregaça as mangas e põe a mão na massa, de alguma forma, ganha algo — não exatamente aquilo que pede — nem do jeito que imaginou — nem quando — mas algo decididamente vem.
Dessa forma, todos os cliques em suas máquinas fotográficas, por serem genuínos pedidos, pareciam ser, essencialmente, tudo que ele podia proferir naqueles momentos; esses momentos eram momentos em que só se podia ser alguém cujas ações se resumem num pedido: momentos de uma vida comum — que não quer ser comum — que merecem nada menos do que pedidos para que se transformem nalgo fora do comum. Os cliques eram, então, displays para esses pedidos que, camuflados em máquinas fotográficas, ferramentas, salas escuras — técnica, enfim — eram, em suma, toda e qualquer fala do jovem fotógrafo! A necessidade de fala, mesmo que sem conteúdo, parecia ser a coisa central — ela o educava, inclusive — ela o vivificava: ele parecia o ser humano mais atento dentre pessoas tão alheias a tudo, tanto que foi capaz de enxergar coisas minúsculas porém poderosas — a técnica passou a ser a vida a ser vivida; mesmo que ele tivesse ares arrogantes e depois, após perder muitas coisas, perdesse também um pouco disso, sua fala não mudou: seu pedido não mudou, muito embora sua forma de pedir tenha mudado — tenha ficado, enfim, humilde.
Privado de muitas coisas — inclusive de esperanças e suas fotos reveladoras — entregue totalmente ao pertencimento dessa privação — algo que ele não conhecia, talvez — ele se depara com palhaços a jogarem uma bola invisível. Estes fazem a ele um pedido: que ele jogue também a bola invisível. Ele, após muito hesitar, decide ignorar sua insistente dúvida — e também sua máquina — decide deixar de depender dos tão batidos verbos acreditar ou duvidar de algo, passando a simplesmente fazer esse algo — e joga a bola invisível — parece então que seu pedido chegou — ou deu um sinal de que vai chegar — de que ele pode continuar a pedir — aí então, no fim do filme parece haver o começo de algo — quem sabe ele entende toda a especificidade da qual ele tanto correu atrás — ele começa então a fotografar sem usar uma câmera fotográfica — depois que ele joga a bola — que não deixou de ser invisível -, passa-se a ouvir o som ritmado das batidas nas raquetes — também invisíveis.
Há mais uma coisa que preciso dizer — talvez a mais importante — sem a qual, eu não poderia — definitivamente — ver o que vi no filme de hoje: a ação de um pedido, ou as diferentes formas que um pedido pode ter; no que a técnica pode se transformar — nas também diferentes formas que ela pode vir a ter. Sem essa coisa, sem esse amor que sinto — esse amor que aprendi assumir ter — sem o sentido que me sinto obrigada a criar, não só para a vida, mas para mim, que, pobre que sou, ainda não sei ter muitos sentidos diferentes dos que comumente sinto -, sem Rubens na minha vida, sem a rotina apertada, sem os discípulos, eu nunca aprenderia a conjugar o verbo pedir e, mesmo sem ainda saber, a ver as tão coloridas formas que essa conjugação pode vir a ter. Obrigada por me fazer saber que posso transformar meus singulares dias nessa ação — e que ela, que em outros contextos poderia ser tão diversa, pode, aqui, se igualar a outra — a de agradecer.