Problemas e maravilhas da enunciação
Hilma af Klint e Rubens Espírito Santo
O linguista Émile Benveniste estudou diversas línguas de tribos e esquimós. Em suas Últimas aulas no Collége de France, ele expõe, a partir do fato de que já existiram comunidades que, mesmo analfabetas, criaram suas línguas (Bamun na África; índios Cherokee na América do Norte e esquimós do Norte do Alasca), um problema da escrita ocidental que não existia em línguas primitivas: a distância entre a mensagem e a representação da mensagem. Estas comunidades, para conseguirem alcançar a criação de um alfabeto, pareciam estar mais próximas daquilo que queriam dizer do que daquilo que representava este conteúdo. O processo de pensar em termos de instrumentalização do discurso a partir da língua em vez de pensar que somos parte integrante de um discurso capaz de se proferir — um organismo significante — é o que Benveniste chama de autossemiotização da língua — o que não era possível para comunidades não alfabetizadas.
Para exemplificar isso, ele fala a respeito de um xamã de uma tribo que queria escrever sua língua. Algumas tentativas para isso resumiam-se a mensageiros que, em ocasiões festivas, deveria recitar textos que ele havia memorizado:
Uma noção que me parece importante e que ainda não foi explorada nas relações com a escrita é a de mensagem. O mensageiro recita um texto que memorizou. Ele não fala. Não é seu o discurso que sai da sua boca. Ele é a boca e a língua de um outro. Que situação singular e como não organizaria ela um discurso tão particular!
Introduzi as pesquisas de Benveniste pois, com as pinturas de Hilma af Klint e algumas de suas falas — Sou tão pequena, tão insignificante, mas dentro de mim transborda uma espécie de força que tem que seguir em frente –, fica um pouco mais claro que ela se dispôs a ser uma mensageira de suas pinturas, e não uma criadora delas. Acredito que para que ela possa ter alcançado algo assim, a pintura não era mero instrumento capaz de representar algo sagrado; mas era, em si, um ato sagrado — não o único, mas o que foi capaz de representar que os outros também eram. Benveniste também fala a respeito disso:
Para que um objeto seja sagrado, para que um ato se torne um rito, é preciso que a língua enuncie um mito, dê a razão de sua qualidade, torne significantes os gestos e palavras.
Fico imaginando o que Hilma af Klint diria sobre suas pinturas serem consideradas abstratas; talvez isso não faria sentido para ela, dado que elas vinham de visões que, acredito eu, pertenciam a uma realidade tão viva cuja dignidade não diferia daquela dos objetos ao seu redor e, por isso, Hilma deveria dar precedência a elas, que, necessitadas por viverem numa esfera diferente da realidade prosaica sobre a qual ousamos parcamente achar que podemos falar — pudessem falar-se por si mesmas e não serem faladas por nós — que presumimos, numa circular carência, um leitor que nos entenda — elas não precisam de qualquer referente além de si — e é esta necessidade que vejo no seguinte trecho de um poema de Res:
[…]
Ritmo de um lado que não conheço
Retorno de um sentimento da coisa
Que queria poder manifestar — gostaria mesmo de estraçalhar a palavra manifestar — e deixar dela somente o imanifesto — o que não pode ser dito nem pelo maldito.
Res, Poema para Zé Terepins
CCS, 05 de março de 2018