O que é o Atelier do Centro?
O Atelier existe para interrompermos a comunicação com nossos fantasmas e começarmos a falar com fantasmas de verdade. Passamos então a parar de idealizar suas existências a partir daí.
O Atelier existe para nos mostrar que devemos recusar veementemente nossa terceira pessoa; devemos recusar o mal, recusar ser a recusa, recusar o objeto desconhecido que queremos conhecer, recusar insistir em não recusar, parar de insistir, parar de tentar ser, começar a não ser nada, permanecer em estado de círculo.
O Atelier existe para ser um palco onde possa atuar a dança que a doença faz, não mais um palco embaixo do tapete. Para vermos que podemos erguer as colunas da destruição. Para mostrar que, se o amor serve para alguma coisa, é preciso que lhe diga não, pois se tem alguém que deve dizer sim, é o amor a nós, e não nós a ele. Antes de se meter com o amor, deve-se observar seu comportamento de longe.
O Atelier existe para abrigar alguns os anos da história que não têm lugar para se dar.
Muitos chegam ao Atelier querendo fazer dali lugar para ser seu palco de guerras e batalhas, para ser herói de algum conto épico, viver coisas mais coloridas e anedóticas. Logo vê, porém, sua narração ser transportada para um mundo onde o ar é doente, quente e manso. Onde há grama crescendo em cada minúscula superfície. Onde passa-se horas estendendo a roupa sobre o varal, onde o dia passa devagar, onde o silêncio deixa com que o martelar da goteira que pinga da torneira faça com que dediquemos-lhe nossa atenção a ponto de fazer com que o som do martelo real nos seja indiferente.
Surpreendentemente, esse é o mundo real, e mais surpreendentemente ainda, somos transportados para este mundo da maneira mais violenta e apressada (à primeira vista, pois é, na verdade, lenta) de todas.
Neste mundo, o descaminho do voo das drosófilas errantes ao redor das frutas é o principal movimento.
Lá, mesmo quando pensava-se resolver a injustiça social, causas humanistas, vê-se que não se pode escapar do choramingar do parafuso quando a madeira entra nele sem cessar, sem ressalva.
Vê-se que nosso corpo está feito de bexigas e nossos membros são alfinetes, e é, portanto, perigoso saltar voo desta maneira.
Na verdade, vê-se que se faz necessário saber fazer um inventário de nossos ossos.
O fato de que não migramos de nossos corpos para outros corpos quando estamos insatisfeitos com ele não é nenhuma coincidência, mas é porque devemos, de algum modo, algum dia, saber mesmo fazer esse inventário desses ossos.
E aí vemos que não sabemos nem o endereço de nossos pés; torna-se plausível dizer que habitamos longe deles, que eles, por vezes, sequer moram no mesmo corpo que aquele em que a gente pensa que mora.
Podemos até querer sair de uma paisagem, mas aí vemos que, na verdade, é ela quem não sai de nossos ouvidos. Essa paisagem, construída de quando a feitura do feijão na panela de pressão se fazia com o latido do cachorro ao fundo num fim de tarde eterno, se repete sem pressa nenhuma. A paisagem continua, a todo custo, a ser ela mesma: Olhar tanto sua lonjura quanto sua superfície exige a mesma pestana.
E é um susto perceber, que, assim como a paisagem continua a todo custo ser ela, nós continuamos também, a todo custo, estar sempre no mesmo corpo.
Acreditamos, às vezes, numa ingenuidade, que podemos nos aventurar sexualmente por todos os cantos humanos, porém logo vê-se que não há maior pornografia que um dobrar de sino às seis da tarde, que repetida e incansavelmente acontece todos os dias.
Se quisermos raspar os dedos no céu, temos que fazê-lo igualmente com o chão, de modo que a distância de nós até o céu seja a mesma até o chão, (ou até, mais radicalmente, raspar o dedo neles como se eles não existissem). O que significa dizer que, num rochedo, quanto mais alto se está empoleirado, mais há chance de poder ser espremido por uma nuvem. O ideal, nesse caso, a fazer é raspar o céu e o chão de modo que não mais haja diferença entre eles.
E o Atelier existe para mostrar que, muitas vezes, na maioria delas, o fato de que estamos andando para frente, com os dois pés, um atrás do outro, de modo que empurramos o chão para que ele empurre nosso pé para frente não prova nada, até mais que nada.
O Atelier existe para mostrar para qualquer pessoa que, por mais que ela tenha um corpo que ela presume estar vivo, qualquer vento pode levá-lo para longe, assim como levaria um chapéu numa cabeça.
CCS, 15 de fevereiro de 2016