O impossível

CCS — Caroline Costa e Silva
6 min readOct 11, 2018

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Hoje acordei com a sensação de que permanecia no sonho que sonhava durante à noite; porém eu estava acordada, ao mesmo tempo que estar num sonho parecia ser um fato. Para tentar despertar deste sonho — eu realmente me sentia bêbada, mas não havia bebido ontem à noite –, tentei me lembrar dos últimos acontecimentos e esperar um suspiro de realidade que diria ah, sim, lembrei de tudo agora, eu realmente não estou num sonho, tenho tanta coisa pra fazer (…). Ao contrário disso, quando me lembrei dos últimos acontecimentos, a sensação imediata foi sim, eu realmente vivo num sonho. O fato de ter tanta coisa pra fazer não me impediu de sentir que estava neste sonho — ele não é um sonho paradisíaco, um sonho onde a realidade estaria completamente suspensa e com ela, todas as obrigações cotidianas — onde eu estaria deitada numa praia deserta lendo –, não: é um sonho que coexiste com todas as características da cotidianeidade.

Faziam parte destes acontecimentos relembrados: a última sessão de desenho de sexta de Res, o almoço na casa de Res com Gabi e Shiva e um emaranhado feito de assuntos cotidianos e a prática de escrita, que tenho conseguido manter viva, o que me faz sentir, também, viva, independente de qualquer resultado seu.

Nesta última sexta, Res falou sobre um livro que leu recentemente, o último livro do Agamben, Que es la filosofia, onde ele fala sobre linguagem e sobre algo que cerca sua obra, sua vida, e que me toca profundamente: o hiato incontornável que existe entre signo e frase, e sobre o artista ser aquele que tenta gerar um sopro entre essas duas instâncias.

O que me espanta em Res é que ele é a pessoa que conheço mais consciente desta incontornabilidade — junto com isso, o mais consciente da divindade — de que o impossível existe e que não podemos dar conta dele. Esta consciência, porém, não é algo que o impede de tentar — não é algo que o faz dizer já que é impossível, vou fazer outra coisa, mas o contrário: é impossível e por isso mesmo eu vou fazer — e se põe a conversar numa esfera incomunicável.

Isso me faz pensar que quem está louco, na verdade, é quem não pensa assim — todos nós — dado que aquilo que achamos ser possível, por exemplo, a comunicação entre duas pessoas, é, justamente impossível — e não é que Res aproxima o impossível para dentro do possível — mas coloca a possibilidade (a ação) dentro do já impossível. Ele realmente opera numa outra lógica, diferente da nossa — estamos, constantemente, tentando operar — com nossos esforços — de forma totalmente possível e coerente — partimos de algo que achamos ser possível — a comunicação — dado que ela é tão impossível quanto a divindade — ou seja, ela é tão divina — e impossível — quanto. Ao passo que Res já parte do próprio impossível — não diferindo nem separando as instâncias, as sessões de desenho de Res me fazem ver essa outra epistemologia — além disso, elas só são possíveis porque, através delas posso ver um pouco mais claro algo que ele sempre fala e que sempre achei difícil: que realmente o espírito está na matéria — achar que os dois estão muito distantes é permanecer na arrogância de acreditar que estamos fazendo bem nosso papel, enquanto deixamos o divino para lá, já que está muito longe — quando, na verdade, nem ele está lá longe e nem nós estamos aqui — e ambos permanecem misturados na bruma que construímos quando separamos esferas.

Outra coisa me espanta muito — eu realmente gostaria de ser absolutamente clara e não parecer abstrata — mas, ao vislumbrar estes múltiplos espantos produzidos numa sessão de sexta, o único signo que me vem é o das lágrimas — e tento, parcamente, transformá-lo em outro signo — o das palavras. Voltando ao que tentava falar, outra coisa que me espanta é que Res opera constantemente — este fato é muito importante — num paradoxo: Res é um homem que tem uma variedade imensa de recursos — de várias ordens: psíquicos, financeiros, emocionais, materiais. Mesmo assim, ele está na posição de quem não tem nada — de quem não possui fala — de não-condições — de desespero — para então falar através de, literalmente, qualquer coisa — seja tinta Golden — seja uma gravata usada — seja uma tela de iPhone ou um caderno da Kalunga — e essa coisa — o desenho, na sessão — vira tudo que ele tem. Ele tem? Quem tem, Res, ou o desenho? Aí, outro paradoxo: quem não tem nada, teoricamente, gostaria de ter — Res, ao avesso disso, não tenta possuir mas é inteiramente possuído por aquilo que tenta (eu nem sei mais se tenta algo, mas apenas fala) atingir com sua fala exasperada: e ser possuído por esta fala é a única posse que realmente vale nessa vida.

Ainda sobre esse assunto — inesgotável e maravilhoso — fiquei pensando muito sobre ontem Zé ter comentado sobre o meu texto deixá-lo sem ar, pois o uso frequente dos traços interrompem uma suposta fluidez que o texto poderia ter. Pensei sobre isso e concluí que, na verdade, a fluidez de um texto realmente não é algo que me interessa — muito menos responder a uma demanda — inexistente quando o que se está em jogo é justamente a possibilidade de não mais responder demandas projetadas por mim mas, quiçá uma demanda que eu não tenho acesso — de que o leitor se sinta bem ao ler o texto. O que me interessa no texto é que, em sua feitura, possa se fazer um dispositivo para que eu saiba respirar melhor — e, se os traços parecem interromper algum processo, na verdade, é porque eles quebram com a ideia de que está tudo bem — de que aquele que escreve está se comunicando com aquele que lê — como se nada estivesse acontecendo — como se nenhum de nós, supostos interlocutores, não estivéssemos agonizando. Os traços — os responsáveis pela quebra do ritmo do texto — os que atrapalham a leitura — denunciam — inclusive para mim — o fato de que eu estou mesmo sem ar — e não posso mais fingir — eles estão estendendo suas mãos para que eu possa me enganchar neles — eles são galhos de árvores que aparecem como pontos de apoio no rio gelado que sou quando não me abro — e que quando tento, vira uma correnteza tão forte na qual eu não poderia tentar nadar — sequer fluir — ela me levaria embora — na verdade, acredito que eles parecem interromper a fluidez de uma sensação que temos de que estamos respirando e de que isso é algo natural e fácil — na verdade, eles interrompem a fluidez dessa ideia pois mostram que ela é falsa: eles me mostram que respirar na superfície de um rio é tão difícil quando respirar embaixo dele — e se quero um dia adentrá-lo, preciso antes aprender a me manter — mesmo que enganchada em árvores — sobre ele.

Assim como os traços entre as palavras são galhos de árvores que denunciam minha própria incomunicabilidade — minha solidão — meu profundo rasgo e sua não-sutura — acredito que somos, cada um de nós que convive com Res, galhos desta árvore nascidas nas margens deste rio abissal presente em cada um — e que, agora que cada um cruzou com Res, a personificação desse abismo, deve ser formulado, inclusive pelo fato de que não há sintaxe que comporte essa formulação; — devemos não adquirir a capacidade, mas a incapacidade — de voltar um passo — de se subtrair — não de separar, mas de abrir o que nos separa — de entender que o impedimento está mais na esfera do possível que do impossível — de errar e poder exclamar a maior redundância: comunicar o impossível — de sair do pertencimento de uma língua — e entrar no que está impregnado dela: o divino.

Reflexões após a Sessão de desenho de sexta de Res

CCS, 1 de outubro de 2018

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