O escândalo de não se conceder o extraordinário

CCS — Caroline Costa e Silva
4 min readDec 8, 2019

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Da coleção de textos de grifos de RES

Sobre texto Sobre o ato de escrever de RES

Na sua estreiteza de coração, o homem natural é incapaz de se conceder o extraordinário que Deus lhe destinava: por isso se escandaliza. […]

Mas quanto é maior a paixão e a imaginação em um homem, e em certo sentido se aproxima da fé, isto é, da possibilidade de crer, contanto que se humilhe de adoração sob o extraordinário, tanto mais o escândalo se ergue contra esse extraordinário, até pretender nada menos que extirpá-lo, aniquilá-lo e espezinhá-lo na lama.

Kierkegaard, O desespero humano, p. 112

[…] Ele foi capaz de uma METÁFORA MATADORA, não tenho a menor ideia da onde esse menino tirou esta imagem, porque o que ele viu “fui eu que produzi”, (não fui eu que produzi — foi produzido em mim, o produzido naquele momento é uma junção, conjugação totalmente outra do verbo ir e a derrota total do pronome “EU” ou poderíamos dizer de outro modo ainda mais preciso, é a derrota total do mundo deítico) e ele foi capaz de descrever ao seu modo próprio e impróprio ao mesmo tempo o que ele viu e não viu, porque o que ele viu não tinha como ver, a não ser contemplar, sentir, o que ele viu, era para ser vivido, era indescritível, ele como um cineasta foda capturou o incapturável num texto muito curto, quero asseverar aqui que é uma manobra quase impossível de ser praticada por um aprendiz de feiticeiro. É uma mágica muito, muito perigosa. Há algo aqui, presente, que realmente me interessa muito, este vão cognitivo, este vão sem leis, onde, parece, por segundos alguma coisa se suspende, como se houvesse um paraíso perdido dentro dos olhos de cada ser humano e isto estivesse perdido, e há algumas poucas coisas neste planeta capazes de resgatar, reconstituir em nós este órgão atrofiado no ser humano — penso que uma destas coisas é a CRIATURA EM CONEXÃO.

Reflexão de RES — sobre o ato de escrever, 13 de novembro de 2019

O senso comum ou os verbetes do dicionário me dizem que escândalo é aquilo que ofende o pudor e sentimentos religiosos, que ofende a ordem, que é um alvoroço, uma vergonha, um tumulto. Kierkegaard — e RES, com sua difícil e tortuosa convivência — me deixam bem claro que escândalo é o oposto disso tudo: é, na verdade, a incapacidade de se conceder o extraordinário — escândalo é permanecer na esfera ordinária — escândalo é se estabelecer em situação de igualdade com tudo aquilo que digo com tanta veemência ser eu.

Vejo hoje, com dor nos olhos, que escândalo é o ato de me identificar comigo mesma — e esse movimento realmente resiste a olhar para os lados: a ser extraordinário — e se fecha num movimento do qual quero terminantemente sair — e encontrar a derrota total do mundo deítico, ou seja, a derrota da concepção em que o discurso é proferido de um “eu” para um “tu”, mostrando uma clara indicação de sentido de subjetividade de quem pronuncia o discurso, para o linguista Benveniste — a palavra em grego dêixis remete a indicar, mostrar.

Se a dêixis é um dispositivo de indicação de sentido de um específico a outro, ela implica necessariamente um contexto para poder significar — disso vem que este discurso, como dito anteriormente, é subjetivo, é local, é dependente deste contexto sinalizado pelo “eu” que fala para um “tu” — sua carga semântica é inerente àquele que fala e à área delimitada por ele, e não a si própria — nela, os signos não falam por si, mas são controlados (ingenuamente) pelo indivíduo que quer que eles falem, isso significa que o discurso é contaminado por sua vontade. O contrário disto não seria dizer algo “que todos sentem”, mas justamente algo não distorcido, algo não corrompido, não controlado, algo não captado, algo intacto mesmo em meio à lama e dor — quando este algo não captado continua não captado (e sempre continuam incapturados, pois essa é sua natureza — conhecê-los seria matá-los e por conseguinte matar a mim mesma. Encostar em sua sombra, que é também sua luz, é o que me cabe), os signos se calam para não poderem ser o que quer que sejam e vazam por outras formas, mas não por aquilo que eles são mesmo: formas — eles deixam de ser forma para ser apenas conteúdo. Por isso a forma é realmente a preocupação central de um artista ou escritor, e isso é muito mais profundo do que parece ser. A forma, inclusive, é tão importante porque é invisível: como diz Res, não tem como vê-la (a não ser contemplar, e contemplar é uma ação absurdamente ativa). E vê-la, a despeito de toda cegueira, é uma mágica muito, muito perigosa.

O mundo deítico é, então, uma forma de discurso contrária à poesia, a uma forma de discurso realmente poderosa, pois, por ser impregnada de questões individuais, trata a linguagem como veículo de expressão — em vez de tratar o autor como veículo da língua, impede-a de ser aquilo que ela é: uma forma de vida que tem mais a dizer (pelo simples fato de ser a contemplação em si e não querer comunicar nada a ninguém) do que qualquer pessoa ensimesmada pode ter — uma forma totalmente outra, desconhecida por aquele que, por um milagre, sacrificaria seu próprio discurso, deixaria de se escandalizar consigo próprio e se humilharia sob o extraordinário para deixá-la proferir-se em si — e, perdido de si, enfim estar em conexão com o paraíso perdido dentro de seus olhos.

CCS, 28 de novembro de 2019

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