O cheiro insondável do demoníaco, ou,
Porque quero comprar o desenho da série verde musgo de RES
CCS, 21 de julho de 2019

É curioso escrever este texto e ter de aprender, no ato de escrever, a justificar algo que se deu em mim em poucos segundos: dizer que quero comprar um desenho, estando ele disponível ou não, foi mais rápido do que dizer se quero comprar uma blusa de R$50,00, estando na frente dela e sabendo que precisava comprar uma. Ou seja, a necessidade de dizer que quero comprar este desenho foi maior do que a necessidade de comprar algo que estava à mão e que era totalmente possível, inclusive pelo preço. O desenho, ao contrário, para mim, não apresenta nenhuma possibilidade de ser comprado: inclusive acredito que não deve haver, neste texto, alguma justificativa que se encaixe naquilo que entendo por pragmático — pois todas os elementos “pragmáticos” afirmam que não posso comprar desenhos de RES — sejam eles mais ou menos concretos: não ter dinheiro ou perspectivas de tê-lo; não ter espaço físico; não ser uma pessoa que tem necessidade de ter desenhos do Rubens pelo fato de que seus textos já completam meu fascínio; por não ser uma pessoa que consome arte mas literatura; enfim, há várias dessas frases cuja veracidade eu agora questiono, pois desde o momento em que esta decisão se fez em mim até agora, nenhuma dessas frases estava ou está presente.
Penso em vários momentos da minha vida que eu comprei livros que eram caros e eu não tinha dinheiro, ou então tive que sacrificar algo para ter o livro, pois eu simplesmente não podia não comprá-los. A frase “eu não posso continuar minha vida sem ter este livro” já foi repetida diversas vezes para meus pais quando uso o cartão de crédito deles e justifico que o valor alto se dava aos livros — e eles não questionam, pois eles realmente sabem que um livro pode me tirar da cama como já o fez várias vezes, mesmo que eles não tenham o hábito de ler. Já ouvi algumas vezes no atelier alguém perguntar “Qual é o motivo real de você estar lendo este livro? O que este livro tem a ver com a sua vida?” e a falta de precisão que a interpretação desta pergunta pode gerar me incomodava, pois sei que a maioria dos livros pelos quais eu me apaixono não me apresentam um motivo óbvio, concreto ou enumerável — eles me dão uma ordem, e é tão forte que eu obedeço sem saber o porquê. Estou contando esta história pois foi o que aconteceu com a vontade de comprar este desenho — desta vez não foi um livro, mas um desenho. Na verdade vejo agora que dizer que o motivo pelo qual leio um livro é uma ordem cuja origem eu desconheço pode ser um bom motivo — talvez pode ser o único motivo real e concreto.
Tem outra coisa também, quando alguém fala no Atelier — principalmente Res — que não tenho relação nenhuma com o mundo da imagem, apesar de concordar, fico profundamente magoada — talvez porque eu sinta que a literatura — para ser específica, por exemplo, há três livros que me intrigam há uns dez anos, ou mais (no caso dO morro são 18 anos), até hoje: O morro dos ventos uivantes, Os cantos de Maldoror e Nossa Senhora das Flores — são feitos de palavras que formam imagens — paisagens — e me levam até elas; elas são, essencialmente, horríveis — tanto quanto a imagem que está no desenho nesta série verde musgo do Rubens.
Outra coisa: nesta semana, a Anna elogiou o final do meu último texto e fiquei pensando sobre o que acontece em um texto para ser possível chegar ao final dele. O final só acontece quando o texto inteiro me empurra para chegar nele — me encurrala e quando vi, não fui eu que pensei nele, mas ele me fez chegar até ele, como se ele fosse uma resposta única, como por exemplo, 5 é para a soma 3 + 2 (na reta real). Fiquei triste depois disso porque não me sentia desse jeito empurrada em outra situação; alguns dias depois (eu acho que foi um dia depois!; como Goethe falou, o demônio realmente abrevia o tempo) me senti empurrada a falar para Res que queria comprar o desenho, não havia mais outra opção a não ser esta. Como dizem na matemática, foi a resposta trivial: a resposta óbvia.
É muito legal isto na matemática, porque dependendo do espaço vetorial em que se opera, a resposta trivial muda. Por exemplo, na reta real, a resposta trivial sempre é 0, isto quer dizer que o 0 sempre é uma resposta para, por exemplo, 3x + 1 = 1. Mas mudando os preceitos iniciais, saindo da reta real, 1 pode ser igual a 2: neste caso, a resposta trivial vai ser outro número que não o 0. (Eu gostaria de anexar uma foto do caderno que estudei isso, mas quando saí da matemática estava tão triste que joguei tudo fora; é incrível que agora vejo acontecer os teoremas que estudava mesmo que com fascínio, apenas teoricamente).
Por que estou dizendo tudo isso? Porque isso se relaciona com tudo que está implicado nesta decisão. Depois das férias, eu percebi de forma derradeira e avassaladora que sou uma pessoa ordinária e medíocre e que tentar não ser é um esforço diário, pois, se deixar as coisas agirem naturalmente, vou ser ordinária.
E escolher dizer para Res que quero comprar um desenho dele foi a resposta óbvia que eu obtive, a trivial. Porém ela é totalmente não-ordinária. O que isto quer dizer? Que, neste momento, fui levada para outro universo, onde o trivial nele não é mais o 0, que é o trivial do universo em que estou normalmente. Isto me dá um soco na cara e me diz que sim, Rubens opera em outra lógica e que sim, nós que convivemos com ele, vez ou outra também conseguimos encostar o milagre de operar em outra lógica — e este encostar eu não sei realmente como se dá — porque não se dá quando eu quero.
Uma coisa também muito legal é que existe a possibilidade de eu não conseguir comprar este desenho, pois há uma fila de pessoas que podem comprá-lo. O legal é que comunicar para Res sobre a vontade de comprá-lo é a parte mais difícil — pois ela é comunicar pro demônio que eu quero algo dele — e ele vai cobrar até minha última gota de suor que eu o pague.
Isto me lembra o fato de que, ultimamente, ou talvez sempre, o hálito podre vindo de obras que cercam o demoníaco vem me cercar; não obstante ele vem me fascinar, infestando minha mente com este cheiro insondável; no século XVI, Christopher Marlowe escreveu A história trágica do Doutor Fausto; no século XVII, John Milton, escreveu Paraíso Perdido; no século XIX, Goethe escreveu Fausto; Thomas Mann, no século XX escreveu Doutor Fausto e Fernando Pessoa escreveu Fausto, uma tragédia subjetiva; além de inúmeras outras referências, não só na literatura.
As histórias sobre a lenda de Fausto foram escritas em diferentes séculos e bebem da lenda medieval do mago Doutor Johannes Georg Fausto, que sucintamente, vendeu sua alma para o Diabo, a fim de obter o que queria — conhecimento –, transcender sua existência, se conectar a coisas que sua limitada realidade não permitiria.
O paraíso perdido, livro que enfim encontrei pessoalmente, é um poema épico que conta (resumir assim é quase criminoso!) sobre a queda de Lúcifer e seus três mil anos confabulando como ele se vingaria Deus, fazendo-o expulsar Adão e Eva do paraíso.

Fico me questionando se essas obras são tão importantes pois na verdade revelam coisas insuperáveis para o ser humano — a vontade de transcender e transgredir — a dívida — a culpa — o proibido; se este conhecimento — conhecimento oculto em alguns casos — na verdade não é um inconhecimento; uma outra lógica — conhecer a fala da língua desconhecida da ninfa — a lei sem lei.
E talvez a ideia de “vender a alma para o Diabo” seja tão explorada e infindável por ser apenas um modo diluído de dizer que eles estão, na verdade, comprando sua verdadeira alma e pagando-a com tudo o que possuem hoje: uma alma que não é realmente sua.
Sobre a queda de Lúcifer, não seríamos, tanto quanto ele, seres caídos de nossa origem, seres sem luz (Mefistófiles significa exatamente isto; achar referência perdida?, Kierkegaard) perdidos na própria escuridão e em sofrimento constante justamente por sermos arrogantes? Deixar o céu como uma metáfora para nossa eterna fragmentação: seres apartados do espírito? Não somos todos, tanto quanto o desenho RES, seres desmembrados?
Redenção
Falei para Res sobre este desenho ser a absorção total do filme O bar luva dourada de Fatih Akin que ele havia assistido no dia anterior, e eu logo após sua sessão. Ambos trabalhos compartilham coisas que acredito serem imperscrutáveis; vou tentar desvendar.
Viciado, violento e perdido, o personagem Honka tenta se redimir de sua trágica realidade ao conseguir um emprego, parar de frequentar o Bar Luva Dourada e parar de beber. Porém, isso não se sustenta por muito tempo, essa solução não era forte o suficiente para afastar definitivamente sua loucura. Assim, sua obsessão por mulheres, talvez proveniente de sua frustração sexual, volta a atuar como protagonista: em pouco tempo depois de parar de beber, ele ataca sua colega de trabalho, bebe garrafas de álcool, volta a frequentar o bar e a matar mulheres em sua casa. Talvez a redenção que ele encontrou não foi a de encontrar um caminho alternativo ao seu, mas foi através do que sua própria desgraça lhe levou: dizer ao policial que, ele era a pessoa que morava na casa onde tinham cadáveres — e ir preso — como se ele já não estivesse preso antes.
O desenho de Rubens me lembra este filme porque ele não é um caminho alternativo à doença de Rubens, ele não é uma fuga para um caminho mais fácil — ele é o assassinato à luz do dia — uma entrega à escuridão — a decisão de ir preso em vez de fugir. Vejo tudo isto quando olho para este desenho, e assim como o policial vomitou ao encontrar os cadáveres de Honka, eu senti náusea ao olhar para a série verde musgo — a com a mesma intensidade que digo que ele é lindo, digo que é horrível, asqueroso e grotesco, como alguém que esfola um corpo — ou um corpo esfolado — o desenho de RES revela as duas visões — não se sabe se o desenho é o corpo esfolado ou se é ele que esfola — ele é estar livre assassinando e é também ter sido preso por isto.
Ninfa = demônio
Talvez esta ânsia que o desenho me deu me mostra que eu não estou preparada para ver aquilo que viu em mim e compreendê-lo — aquilo que viu em mim me possui e rapidamente me abandona, revolvendo minhas entranhas; querer possuir o desenho é só um indício de como é forte a atmosfera demoníaca — como sou invadida pela sua devoradora força que, quando encontra uma fresta, entra mesmo para devastar — agindo sobre nós, sussurrando em meu ouvido como é impossível não querer possuir esta coisa que é impossuível, que é a ninfa — como a adolescente loira pela qual o Sr. Honka anseia, como se todos os assassinatos, em sua lógica delirante, fossem um passo em direção a ela, porém quando ele chega perto dela, não consegue se mover — mesmo com toda sua força e loucura, algo nele o avisa que ele não pode possuir a ninfa e ele realmente não pode fazer nada para tê-la — ele pode, mas não pode. Rubens lança todos os materiais em direção ao papel — mas frente ao acontecimento imperante do desenho, seu poder está fadado a ser minúsculo.
Quando vi o desenho de Res, a ninfa saiu — ela fica por pouco tempo — o vento causado pelo balançar de seu vestido me embriagou — e perto dele não há possibilidade de não ter dinheiro, mesmo que eu não tenha nunca — assim como não há a possibilidade de possuí-la — eu não quero mais não tentar respirar o ar de seu vento mas quero pagar para que estar exposta à possibilidade do seu vento — não quero não correr atrás do mim — que mora antes nela — depois no “sim”.
Fundo verde musgo
A cor ébria do fundo do desenho me atrai sem hesitações — ela não parece uma cor, mas sim o que sobrou de uma cor — parece a cor de um céu azul de um dia sem nuvens no qual a noite desaguou — um céu não mais pueril de quem sonha com um mundo novo — mas um céu contaminado pelas trevas da verdade mortífera deste mundo — como as cores destas fotografias de Cy Twombly permanecem, insistentes, como sobras de sua devastação por este mundo:

e elas convivem com a saturação de outras, afirmando a inegável presença deste mundo invisível — como a de um pesadelo de quem nele adentrou — e que persiste até na mais profunda insônia.

Bibliografia
A aventura, Agamben, Autêntica
O Paraíso Perdido, John Milton
O conceito de angústia, Kierkegaard, Vozes de Bolso