Nigredo, albedo e a aporia do rubedo
Nigredo, ou, O pré-gato
Os alquimistas chamavam a primeira fase da alquimia de nigredo, que, em latim, significa escuro. Nesta fase, todos os ingredientes eram misturados até atingirem uma matéria preta. Esta era a fase de morte espiritual.
Nesta fase, o sujeito empenha-se em produzir livros, esculturas ou desenhos. A produção de um livro, de uma escultura ou de um desenho, aqui, é um segundo plano em relação à transformação do sujeito que a produz. Porém, a produção de algo, não é completamente desimportante: ela é fundamental para que esta transformação possa acontecer; é como se o homem, praticamente em estado de coma, precisasse de um objeto para resgatar certas forças contidas neste objeto, não para colocar dentro de si, que é uma prisão maior que o objeto, mas para devolver-lhes alguma vida e assim, pegar emprestado para si uma vida da qual certamente ele está em busca — mas ainda não sabe disso totalmente. Assim, dilacerado e estando entre muitas forças díspares, enquanto ele ainda não consegue transformar a si mesmo, consegue pelo menos vir a ser um transformador de energia. A cada vez que se aprofunda nesta produção, percebe-se cada vez mais como alguém sem vida, e este estado lhe passa a ser tão incômodo e putrefato que começa a ter necessidade de estar em estado de produção; esta, então, passa a funcionar como uma espécie de termômetro da sua própria falta de consciência e de espaço interno.
Albedo, ou
O gato
Após muito produzir, adquire-se inevitavelmente um domínio da técnica utilizada, que é o que nos permitiu concluir que quem adentra a fase do gato, chegou ao nível de mestre proposto por Ezra Pound.
Porém, a técnica que se diz aqui, por mais exímia que seja, não é em si mesma. A partir dela, pode ser que o seguinte seja enfim revelado: aquilo que o homem tem necessidade não é de fato da sua produção, mas sim daquilo que o mantém vivo e com o qual ele entra em contato quando está produzindo algo através da técnica.
Ele não quer mais colecionar pequenas centelhas de vida durante algumas horas de sua semana e colocá-las na estante, mas reunir seus próprios cacos espalhados em seu corpo e colocá-lo para enfim viver. E vê que para este viver, é preciso um aprendizado que o ensina, a duras penas, que, ele é muito menor que sua vida e que dela, ele nada possui — ela é a obra em questão: sendo tão grande, ele nem a alcança. Talvez só a partir deste tipo de consciência, ele possa estar em posse desta ausência e vir a ser possuído pelo que ele chamava de sua vida — mas que agora vê como um gigante a andar sempre em sua frente.
Albedo, em latim, significa brancura, e é a fase posterior ao nigredo na alquimia. Esta brancura é uma característica de uma neutralidade: ou seja, a fase do gato caracteriza-se por uma grande impessoalidade. No gato, começa-se enfim a tomar uma posição com relação aos problemas pessoais sabidos e analisados à exaustão no pré-gato, passando a enfim burlar a identificação do sujeito com as leis que o regem e enfim convertê-las, ingresso obrigatório para adentrar o mundo da ficção que todo artista pretende atingir. Para esta ficção, o objeto do artista é um artifício e isto em nada quer dizer que ele não seja espiritual. O fato da técnica ser algo a trabalhar na matéria, não exime seu trabalho espiritual. Sobre o artifício, diz Lacan:
[…] visto que ele (o artifício) é um fazer que nos escapa, isto é, que transborda em muito o gozo que podemos ter dele. Esse gozo bem fininho mesmo é o que chamamos de espírito. [2]
O artifício é formado por ars e ficium: técnica e fazer. Só há fato pelo artifício [3], diz Lacan. Talvez esse seja o maior salto do gato para o pós-gato: No gato, há o domínio do fazer enquanto no pós-gato, o sacrifício desse domínio: o não feito pelas mãos, a acheiropoiesis, (ἀχειροποίησις: a=não; χειρο=mão; ποίησις=fazer).
A aporia do rubedo, ou Pós Gato
Ninfa é o médium onde as divindades e os aventureiros se encontram.
Roberto Calasso, Os deuses e a literatura, Companhia das Letras, pág. 29
Para os alquimistas, a última fase de um processo alquímico que é a produção de ouro é, na verdade, a ressurreição do alquimista: ele deixa de ser uma pedra morta e se torna a pedra filosofal da qual está em busca. Sua alma renasce, assim como a matéria dos metais morre e se regenera. A palavra rubedo, em latim, significa avermelhado.
Aporia (Ἀπορία), na mitologia grega, era a divindade da impotência, da dificuldade, do desamparo e da falta de recursos. Ela era odiada pelos homens.
Hoje, a palavra aporia é usada para se remeter a um caminho sem saída, como quando duas ruas se encontram e logo à frente há um muro: é uma contradição, ou seja, a comunhão de coisas distintas.
O rubedo, o último estágio da alquimia, o pós-gato para nós, a região habitada por Res, é uma aporia — é saltar na realidade de uma vez sem ter como fugir dela — mesmo que as manobras da fase do Gato não tenham sido diretamente nas leis que o regem nem no sintoma, as leis desta fase não são mais as mesmas, não são regidas pela sophrosyné. Neste estágio, não há mais saída a não ser ouvir a própria voz se falar; simultaneamente, tem-se a perda do controle da voz — a perda do poder de si, como a divindade Ἀπορία nos mostra. Ouvir a própria voz, aqui, não difere de ouvir a voz que vem fora de si — a voz da natureza — o canto da ninfa que habita esta natureza, morada agora compartilhada com o alquimista — aquele que saiu da prisão de seu corpo — o alpinista que escalou o morro mais alto para poder habitar as nuvens — e entrar numa prisão de fato: descer o morro diariamente — vivendo em mundos opostos — suportando estar no meio de duas esferas que não se encontram; estando em aporia, sendo, enfim, a pedra filosofal, o mediador que unifica.
Sem o sintoma o sujeito não se sustenta, segundo Lacan. Por isso, o gato não é uma medida para se afastar do sintoma, mas para se aproximar dele de forma brutal e cada vez menos pessoal — e adentrar o sinthoma, como fez James Joyce, para Lacan — ou Res; para não mais se relacionar sensualmente com a vida — nem espioná-la pela fechadura — mas abrir a porta da dor — e estar nela sem senti-la; a ouvir constantemente os cantos mortais da sereia — e não morrer de amor.
Notas:
[1] Inventores: Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo.
Mestres: homens que combinaram um certo número de tais processos e que o usaram tão bem ou melhor que os inventores.
Diluidores: Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.
Ezra Pound, ABC da literatura, pág. 45
[2] Lacan, O seminário 23: o sinthoma, pág. 62
[3] Lacan, O seminário 23: o sinthoma, pág. 63
Bibliografia
Agamben, O fogo e o relato, Editora Boitempo
Ezra Pound, ABC da literatura, Editora Cultrix
Jung, Estudos alquímicos 13, Editora Vozes
Lacan, O Seminário 23: o sinthoma, Editora Zahar
Roberto Calasso, Os deuses e a literatura, Companhia das Letras
CCS, 31 de janeiro de 2019