Marquês de Sade

CCS — Caroline Costa e Silva
4 min readOct 11, 2018

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Marquês de Sade

Sade é tido como um dos escritores mais aterrorizantes da história devido a histórias que contêm, de forma abusiva estupros, incestos, orgias, violações físicas, sodomia, pederastia entre outras práticas que, na época, eram consideradas criminosas.

Libertinagem

Porém, além de todo esse enredo que ronda seu nome, podemos dizer que a voluptuosidade de Sade se dá entre as frases que constituem seus romances — são elas as próprias cenas dos crimes: cada personagem — cada palavra — copula com todos as outras, submetendo-se a inúmeras regras que não mais nos pertencem e que existem justamente para poder excluir as regras do sentido e da linearidade, tornando-se um carrossel discursivo, fazendo a razão cair do cavalo e o texto ser a mola que propulsiona um movimento perpétuo e circular. É por isso que, nos romances de Sade, os mais variados tipos de incestos são feitos: quando o que está em jogo é o discurso, não se tem limites quanto ao gênero.

Libertinos são pessoas que, sobretudo, se desviam de um caminho imposto, faltando ao cumprimento de algum dever. Ou seja, libertino é exatamente o que Sade não é — não da forma que se imagina um libertino –, dado que não falta ao seu compromisso de escrever ininterruptamente seus crimes — e portanto de violar o que sua constituição o pediria para ser.

Interdito

Talvez a vida, a sociedade, as pessoas, a matéria cotidiana nunca aceitaria por completo a fantasia proposta por Sade: não só por qualquer lei moral, mas porque algo iria se esgotar — ao passo que aquilo que Sade quer só aumentaria — não se pode, por exemplo, matar duas vezes a mesma pessoa — ou ainda, não há como transar infinitamente sem atingir o gozo — o corpo não permitiria coisas assim. Ao contrário disso, os libertinos de Sade estão constantemente em atividade — na realidade, não daria para ir mais, não poderia se avançar no absurdo — iria sempre sobrar muita coisa — a impossibilidade do que achamos ser realidade só confere ao próprio discurso infinitas possibilidades de fala, fazendo com que somente a linguagem permita a construção de Sade — somente ela é infinita na mesma proporção que a constituição que este ser pede para poder se construir.

Repetição

Sade não se encontra preso apenas por uma prisão física — mas está submetido a leis que ele mesmo não conhece — apenas vislumbrando-as quando escreve episódios que, de alguma forma, se repetem, e que gritam para que sua forma exista. Sade se submete, ele mesmo, a uma frequente violação por uma linguagem que é, por excelência, criminosa — ao ser o contrário do gozo: não finge cessar seu desejo — não encontra vacância — mas promete apenas que ele sempre lhe dê mais. Assim, Sade construiu com suas mãos janelas que dão para a realidade, em vez de ter enganado-se com aquilo que achamos ser realidade, quando, na verdade, estamos mergulhados na ilusão — deste modo, Sade conseguiu colocar a cabeça para fora de sua prisão e ter se falado — e talvez seja esse o motivo pelo qual Sade entrou para a história — o que é muito mais excêntrico do que qualquer suposta excentricidade do conteúdo de suas histórias libertinas — pois criar um alimento feito de uma língua que, inicialmente, ninguém vai ouvir e que se baseia numa repetição infernal é, sem dúvida, subversivo, pois vai contra a natureza do corpo de qualquer um — o de gozar e dormir.

Loucura

Os romances de Sade não são feitos de histórias mas do próprio tecido da linguagem que o alimenta deixando-o, ao mesmo tempo, sempre com fome — são aquilo que o fazem permanecer vivo — são aquilo que o salva de sua própria vida — Sade é um sobrevivente de sua própria vida — tendo todas as condições necessárias para fazer seu desejo morrer, Sade conseguiu não só estar perto do seu alimento mas criá-lo, afastando-se de um estado mórbido — estade esse que, inclusive estaria mais próximo do gozo literal, enquanto que o gozo que Sade tem ao escrever seus crimes está sempre começando e não vê fim — ele comete crimes maiores do que os que cometeu fora do papel — ele criminaliza sua própria ação ao não matá-la (e ainda assim, continua vivo) — ele faz com que seu pesadelo permaneça vivo. Assim, enquanto achamos Sade um louco, ele está muito mais próximo de seu alimento do que nós, que, batendo punheta para milhares de impedimentos e negações, pensamos ser: a loucura de Sade é a própria sanidade da qual tanto fugimos.

Conversão

Talvez a fome em estar vivo de Sade era tamanha que ele não precisava se esforçar para converter uma energia mórbida de matar e fazer crueldade em energia criativa — mas não seria esta energia, talvez, algo tão violento que logo ao nascer já converte-se em outra coisa que não o matar? Ou ela é tão violenta que não vê diferença entre matar e não matar? Sem distinguir gêneros — pertencendo assim absolutamente ao mundo do discurso, não seria ela o próprio desejo de sobreviver, de quem está realmente à beira do abismo e não hesitaria em agarrar qualquer minúscula pedra que promete lhe salvar — independente de que pedra seja essa? Sade é um artista não por ter escrito, mas por ter feito da escrita algo que salvou sua vida do que ela poderia ter sido — assim, Sade era livre mesmo sendo prisioneiro.

CCS, 18 de setembro de 2018

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