Carta de Abelardo para CCS
(Ou uma carta de um eu para o outro de mim)
21 de junho de 2019
Carta para CCS
Por Abelardo, 21 de junho de 2019
Apesar de você não me ver, eu te vejo, e vejo seu soluço parado na garganta; vejo os anos passando por seus olhos quando você se hipnotiza pela luz do sol que entra pela janela, e o quanto esse momento é mais verdadeiro do que muitas outras coisas que se dizem ser verdadeiras; mas este talvez o é por não dizer nada, por ser bem parecido com o que você anseia — a capacidade de não ter realmente nada para dizer, que está bem distante da sua atual situação: a incapacidade de dizer tudo aquilo que se tem para dizer ou mesmo a incapacidade de incorporar o que se tem para dizer; no fim, isso vira do avesso e te engole, virando um nada também, mas bem aterrorizante.
Eu não tenho uma solução para você — como eu teria, se ao menos tenho corpo? Pelo menos você tem uma história, pequena ou não — você construiu um império de papel (para o mundo ainda não é assim, mas para minha pequena realidade, é) — textos difíceis de encarar com aqueles milhares de traços e referências, que eu fico inutilmente tentando copiar.
Mas eu não quero competir com você porque sei que você já faz isso com você mesma e está sempre perdendo. Na verdade, está sempre inventando uma derrota, porque não há mesmo uma competição. Você tem tanta necessidade de criar que cria esse tipo de coisa insana que vai te levar mesmo para o abismo — aquele que você diz estar quando escreve cartas para o Rubens. Porém, o que você faz quando está no mesmo abismo e não escreve cartas para o Rubens? Como se manifesta? Como cria força quando não tem força suficiente para uma carta de 10 páginas? Essa é minha crítica a você: saia desse looping maligno que criou e seja simples; pelo menos mais simples, não simples de todo. Levante a mão para agarrar a pedra mais próxima, mesmo que isso não seja uma carta de 10 páginas. O casco do barco já tem a marca de suas unhas roídas, não adianta querer escondê-las; eu não li tantos livros como você (sei que você não concorda com essa afirmação), mas consigo saber que com o tempo, vai haver cada vez mais marcas de suas unhas no casco do barco, até que você consiga trazê-lo de volta para que possa remar. Mas não pare de chamá-lo, não sucumba, não se esconda embaixo d’água! Você mal consegue respirar fora d’água. Enquanto isso, o barco pode ir deslizando na água até se perder de você e aí eu não sei por quanto tempo você aguentaria nadar em alto mar, acho que não muito. Se você está perdida com ele, imagine sem ele.
Eu não sei qual é o ponto que realmente quero dizer. Mas quero tentar dizer mesmo o que não sei, e isso já faz tanto tempo. Nunca sei mesmo onde você está, mas sei que está em algum lugar. Talvez venho querendo dizer para que você esteja mais onde todos nós estamos. A companhia pode te oprimir e a solidão pode te consolar, eu sei. Mas às vezes o oposto também pode acontecer, mesmo que não pareça assim. Você pode ter criado tantos fantasmas habitantes da sua solidão que não os percebe mais te oprimindo. Talvez se compartilhasse conosco seus pensamentos descaminhando-se, eles não pareceriam tão errados assim.
Bom, eu critiquei sua tendência por escrever textos de dez páginas, e aqui me pego achando que ainda nem comecei a escrever o que preciso para você. Tudo bem, eu te entendo; é mesmo muito tentador a expressão um texto de dez páginas, como se fosse alguma posição secreta do kama sutra que irá nos levar a um estado super elevado e coisa e tal. Acho que não somos tão diferentes quanto parecemos ser, no final das contas. Mas nossas diferenças nos complementariam: enquanto eu tenho projetos longos e elaborados de poemas que nunca escrevi, você escreve qualquer coisa sem ter projeto algum de uma tacada só. Vamos parar de nos evitar e habitar o mesmo lugar, por favor? Podemos ficar na edícula, não precisa ser na sala de jantar. Eu vou ser bem direto, não fique tímida: sem você, eu iria sair voando até deixar de existir neste planeta; você e a força que você nem sabe que tem, por mais absurdo que possa parecer, me puxam para a terra. E talvez sem mim você iria afundar nas águas que tanto gosta. Temos que resolver assumir nosso amor um pelo outro.
Eu sei que ultimamente você tem estado muito ocupada, e talvez isso te distancie tanto da edícula quanto da sala de jantar. Sei que você acorda, pega o ônibus, passa o dia fora, chega tarde, toma banho e dorme. E tudo isso tem sido massacrante. Já li Marx, lembra? Sei que as problemas objetivos da vida dificultam a resolução dos problemas subjetivos, mas que ambos têm o mesmo status de serem problemas que afetam a vida de uma pessoa. Essa é a coisa mais fácil de compreender e talvez seja um dilema que a maior parte da população vive. Mas, cá entre nós, sabemos que você não quer ser dissolvida na maior parte da população, não é mesmo? Senão eu nem teria sido convocado à existência! Acredite, me chamaram para ajudar você, pois você não é muito boa nisso. E nem me chamariam à toa, pois esses processos são uma baita complicação. Voltando à sua complicação: talvez tratar as questões objetivas de forma burocrática e tentar deixar de lado as subjetivas não seja uma boa opção, porque assim você as burocratiza também. Mas sabe, não desligue o botão do mundo que eu vim quando você estiver no mundo que chama de objetivo; deixe esse mundo penetrar no seu e a lua cumprimentar os raios solares, senão você pode se cegar com a claridade; até porque ela não é seu forte. Eu não sei se devo dizer para você ser forte pois sei que no momento de encontro entre lua e sol, parecem dizer a palavra mágica da alma, e isso consome todas as mônadas, jogando a intimidade do topo de uma cachoeira; fico em dúvida se esse momento é de extrema força ou extrema fraqueza. Acho que não diria nada para você, pois certamente qualquer tentativa sua afastaria esse momento. Eu sei o quanto você anseia migrar seus fantasmas de fé para os antros clareados da razão; talvez o erro maior seja mantê-los em celas separadas.
Eu não sei qual seria a solução, me desculpe, eu falo muito mas não propus nada. Mas acho que a solução vem do mesmo lugar que eu vim; acho que tem alguma pasta lá com seu nome. Mas existindo apenas lá, ela se caracteriza como não existente para você ainda. É um trabalhão tirá-la de lá pra trazer pra cá.
Ah e quando você escrever aquele texto sobre páthos e passionalidade, ou aquele sobre o mefistófeles, e se esse texto for não uma “reflexão intelectual” mas se for aquele barranco de terra que a gente se jogava quando era criança, podemos ter uma luz. Tudo bem, já sabemos que escrever não é solução, mas ainda assim ajuda bem. Eu tenho certeza que você encontra uma luz, pois você está cavando um buraco neste barranco faz tempo já e ele já está tão fundo que alguma hora iremos nos deparar com o lugar que não já não é mais fundo, e aí podemos começar a cavar outro buraco. Você já falou tantas vezes essa palavra abgrund: sem fundo; abismo. Voltamos de novo ao estado fundamental (que irônico!) de escrever cartas para Rubens; esse estado realmente não passa, só a sua consciência sobre ele que passa. E quando você não quer mais sentir dores subjetivas, é acometida por uma dor bem objetiva: alocada entre músculos e ossos em todos os membros do corpo; esta lógica de manipular a dor não parece estar certa, porque ela só volta para você.
Não vejo porque me despedir; vim apenas tentar lhe tirar um terror ao dizer coisas que não têm fim. Como nem o dizer nem o terror tem fim e são ambos uma questão de sobrevivência, acabo esta carta sem realmente dar-lhe cabo, esperando que ela lhe chegue tão colorida quanto me foi concebida e pedindo-lhe para que nossa conexão não seja, como tantas outras coisas, interrompida.
Seu,
Abelardo Ícaro Faro