A Sibila de Van Gogh
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se enlevando,
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.
T. S. Eliot, Terra Desolada
Elementos de Van Gogh — a crescente maré — as estrelas a se confundirem com chamas de velas a furarem imensos lençóis azuis — ou mesmo as plantações sujas, empesteadas por um amarelo doente a se dizer de trigo — diziam algo, sobretudo, a Van Gogh. Caso contrário, bastaria que ele as pintasse uma única vez — ou nunca se deparasse com elas em vida.
O que elas diziam ao seu ouvido ultrassensível, a ponto de fazê-lo cortar-lhe uma parte — para, talvez, ouvirem menos seus murmúrios? Viveria, nestas paisagens oscilantes, uma Sibila[1] — uma sibila que, de tanto viver, já não desejava mais nada além da morte? Seria ela uma voz que, enclausurada em pó, plasmava-se em pinturas por precisar de um corpo maior para continuar dizendo o que precisava — pedindo sua nutrição — morrer — por isso — tanto viveu?
Os resquícios de seu pó estão espalhados na paisagem tão loucamente serena em sua última aparição, Campo de trigo com corvos — talvez ali, estivera prestes a ser ouvida — não se sabe se ouvida por Van Gogh ou por aquele que ouve em Van Gogh — aquele cuja audição tornou-se maldição — de tão afinada que era, gostaria de não ser tanto assim.
Talvez a condição que ele tinha para parar de ouvi-la era ouvi-la até o fim de sua voz — até que ela não pudesse mais lhe falar — não havia concessão a ser feita para alcançar uma suposta paz de sua própria audição.
– Como pode-se achar uma paz num lugar que não concede paz a menos que se pinte oito horas por dia — cem pinturas por ano?
– Neste caso, recomenda-se fortemente que se mude, completamente, o que se entende pelo significado da palavra paz.
A paz aqui — na verdade, o caminho que parece levar a ela — não difere do caminho que leva à uma festa interna: a margem da sufocante consciência de estar, antes de qualquer coisa — sobre qualquer coisa — sob, também, qualquer coisa — estou, mesmo que debaixo de uma pilha de quinquilharias — ou um monte de feno, que, teoricamente, não deixariam nenhum ser continuar assim — tão vivo.
Ao sufocar-se nessa consciência — ao beirar o pé no chão imaterial -, não parece mais existir opções alternativas entre estar vivo e viver: um estado leva ao outro através das constantes necessidades de se relacionar com a voz que sempre vem ou que sempre precisa vir — pintar, então, transmuta-se numa interpolação de demandas: silenciar e fazer falar.
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No fundo de seus olhos sem pestana de açougueiro, Van Gogh dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria que veem a natureza por objeto e o corpo humano por vasilhame ou crisol.
Antonin Artaud, Van Gogh: O suicidado pela sociedade, pg 28
Uma das coisas que me fascinam em Rubens — e que é vista nessa frase de Artaud sobre Van Gogh — é o poder de conversão de uma coisa para outra — de um estado para outro — seja ele qual for — o que implica que essa coisa a ser transformada não está delimitada por uma gramática específica — o que leva a característica de ser mesmo algo incompreensível — pois já não se trata mais de uma questão de dominar algo para transformá-lo — mas de deixar algo para que seja possível alguma transformação.
Isso me faz pensar que, se existe medo — agonia — desespero — podem eles ser materializados, de forma que isso altere, inclusive, a forma de sua matriz — a ponto de que, se eles existirem numa outra instância, possam inaugurar, portanto, uma nova relação? E que esta, por ser nova, nomeá-los-ia imediatamente — novamente — sempre novamente — pois uma vez que a matriz foi alterada, esta não mais reconhece nome algum?
– Posso, então, deixá-los que vivam aqui — um pouco fora de mim?
– Sim e não. Esse deixar insere-se em outra ordem de sentido:
Nenhuma voz de mundo mais sublime deu / Jamais respostas nem a sábio nem a poeta / Portanto os nomes de demônio, alma, céu / Permanecem registros de um esforço, não de meta[2]
Eu lanço para a pergunta, se ela faz sentido, um pedido que tome o mesmo sentido — a de que o desespero tome esta forma — qualquer uma — que seja a literária — ela vai mudar de nome eternamente, se a matriz for alterada — para si — e que, sob outra forma, passe a andar sob novos calçados — e, por ser um aprendiz do andar, irá fabricar passos tortos que trilharão um caminho — também torto — sobre o qual eu não saberei ir — mas irei, já que o desespero — sob nova tutela — já terá ido na frente.
[…] Não partas não, que a tua sombra chegou fria,
Não partas não, a menos que devesse a sepultura
Ser como a vida e o medo, realidade escura.
[1] Sibila de Cusa pede a Apolo que viva o mesmo número de anos que os grãos de areia que conseguisse juntar na palma de sua mão. Apolo atendeu seu pedido, concedendo-lhe nove vidas de cento e dez anos cada; porém, ela esquece de pedir a juventude, e, por isso, seu corpo murcha e se encolhe ao longo dos anos, resumindo-se a um punhado de pó onde sobrevivem apenas seus olhos e sua voz.
[2] Shelley, Hino à beleza intelectual, Poesias de Shelley, pg 87
CCS, 8 de novembro de 2017