A cela que habita
De um lado, o atordoamento é uma abertura mais intensa e arrebatadora que qualquer experiência do conhecimento humano
Agamben, O aberto, p. 95
A vida é um âmbito que possui uma riqueza de ser aberto que o mundo do homem talvez não conheça totalmente.
Heidegger
Eu vos ensino o Além-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?
Nietzsche, Assim falava Zaratustra, Vozes de bolso, p. 14
Nem a cotovia vê o aberto
Rilke, Oitava elegia do duíno
Uma das mais bonitas e misteriosas frases do último texto de RES, Escritos para Cézanne, é a seguinte:
[…] é da natureza da abertura não permanecer aberta […]
Esta frase parece, à primeira vista, contraditória; porém após ter encostado um pouco nas águas que RES nos impele a mergulhar, fica menos contraditória.
Um destes aspectos dessa abertura penso que pode ser justamente a ação de abrir mão do controle — do qual também temos necessidade a todo momento. Esta perda de controle não é um medo que apenas concerne ao nosso tempo — Platão, ao expulsar os poetas da República, o fez justamente porque a força — ou o descontrole — de sua poesia iria fazer com que os cidadãos perdessem o controle de si e, assim, perdessem também o rumo do progresso da cidade (inserir rodapé — ver citação — cap. X).
O Super Homem de Nietzsche abre mão de si — de suas definições e certezas sobre si e o mundo — pois se sabe perecível, então nada reserva a si mesmo — nada acumula, nada conserva: dispêndio de certezas e ideias, muralhas que apesar de abstratas são tão duras como concreto!, sabe que a realidade de um sacrifício é clamada por seu cotidiano — pela difícil consciência de ser perecível — por corolário, ao tê-la, ou entrar em estado de consciência, ele quer viver todas as instâncias — e aceita isso como for — esta aceitação está longe de ser passiva — mas tem a violência de alguém que se põe na crina de uma onda do mar — e nela se põe a vagar!
Acredito ser muito semelhante o que Nietzsche diz sobre a vontade de poder com o que Agamben chama de inoperosità ou impotência ou, ainda, Blanchot sobre a desóeuvrement ou Deleuze sobre a resistência. Na expressão vontade de poder, a palavra vontade não tem relação com o que entendemos por vontade como exercer o livre-arbítrio ou como uma liberdade individual, por exemplo, mas com uma relação de forças, que, por essência, relacionam-se umas com a outras, agindo e reagindo num complexo hierarquizado, que, quando manifestado, manifesta aquilo que quer na vontade, e não mais o que o sujeito quer na vontade. A vontade de poder é quase uma aniquilação da vontade própria — pois o poder é daquilo que quer e não do indivíduo — o domínio aqui é da relação das forças, e não de uma força sobre a outra — de um ponto de vista viciado, alguém pode ver que algo é imposto à força — mas também pode ver que algo cede à força à relação — uma imposição dá espaço à cedência — à abertura — que não fica aberta pois várias forças estão agindo e reagindo — e o mais natural seria fechá-la. Mais uma vez o último de texto de RES nos diz:
Eu cede à vida, eu cede a ser, eu cede. Cedido estou aqui entre paredes. Cedido estou prestes a acontecer, como um fenômeno da língua e não de mim, se tenho chance de dizer é quando abro mão de escrever e o escrever se escreve.
RES, Escritos para Cézanne
Aqui, RES conjuga o verbo ceder na terceira pessoa, mas começa a frase com eu. Por que não está errado? Porque o eu aqui não é mais o sujeito — ele já deu espaço para a vida — para o ser — para qualquer coisa que não ele. Ainda assim, liberto de si, está ‘entre paredes’ — se liberdade é criar saídas — só alguém que realmente precisa de saídas terá necessidade de criá-las! Quem se acha livre não se sabe estar encurralado por paredes — quem se acha livre não tem necessidade de ir a lugar algum — estagnando-se numa ideia errônea de liberdade — não tem o impulso para criar o que quer que seja! Quase por lógica — uma lógica que sumirá de perto de mim assim que eu acabar este texto ou até mesmo este parágrafo — o artista vira criança para Nietzsche — pois quem não é prisioneiro, não cria saídas → não terá nunca saídas para criar a si próprio → sendo para sempre o que a inércia quis que ele fosse, envelhecerá de acordo com o tempo → diferente de um artista, que, ao passo que mais cria saídas de ar, mais respira, mais vive e mais rejuvenesce — tornando-se, no último estágio de sua metamorfose, criança!
Ao criar saídas de ar, o artista libera potências de vida que estavam subterrâneas nele mesmo — isto, para Deleuze, segundo Agamben, é a resistir. Inclusive pelo fato de que o prisioneiro ao criar saídas de sua cela, pode fugir — mas ele não o faz — por que? Ele pode fazer isso — ao mesmo tempo que ele pode não fazer isso; as duas possibilidades são diferentes daquela que diz que ele não pode. Ao, inclusive, juntar o poder com sua privação, ele inventa uma terceiro cenário, desligando os cenários corriqueiros de “sim” e “não” — seu poder reside nesse poder-não: nessa impotência, nessa vontade de poder, nessa inoperosidade.
Acredito que seu terror está bem distante do que aqueles que estão ao seu redor devem pensar — e não deve se equilibrar na gangorra do ficar ou sair; estas duas pontas já não fazem sentido para quem dilacerou uma gangorra que agora se (des)equilibra em inúmeros extremos — e talvez se aproxime do fato de que o artista, após se dar conta de sua cela e da sua necessidade de criar janelas, já não apenas habita a cela — ele não precisa mais lutar por um lugar seu — ele se dilacerou tanto — virou tão grande que abarca mesmo um mundo — e a cela o ultrapassa — habitando — impenetrável — também — nele.
CCS, Sobre a Aula de Segunda de RES, 15 de julho de 2019