A aporia do desenho de Rubens Espírito Santo
Se alguém fosse descrever tecnicamente o desenho de Res desta sexta, diria, de um jeito ou de outro, que há diversos materiais neles que estão encobertos por tinta branca ou preta; que inclusive, estes materiais encobertos não foram colocados ali de qualquer jeito, mas com procedimentos que os violam, como tiros de espingarda em latas de spray e de tinta. Todo esse resíduo de tinta e spray que se depositava sedutoramente no papel foi velado por camadas de tinta: isso aponta para a questão: o desenho é aquilo que está atrás desta camada de tinta ou é a própria camada de tinta? O que a camada de tinta faz, no fim das contas, mostra ou esconde o desenho? Esta pergunta parece irrelevante, pois o que está atrás da camada de tinta não esconde; me lembra a pergunta de Heráclito:
Como pode alguém esconder-se [1] diante daquilo que jamais tem ocaso? [2]
Superficialmente, podemos pensar que a tinta está velando algo. Porém, a velatura de alguma coisa não me aponta unicamente para a impossibilidade de ver esta coisa, mas para o fato de ter algo lá, o que é mais importante do que eu vê-la, pois eu não sei de fato ver; isso escancara tudo aquilo que me foi velado sempre: a possibilidade. Ou seja, o fato das coisas serem possíveis de ser realizadas, inclusive as coisas impossíveis. Além disso, o aparente encobertamento de algo escancara que há algo que jamais tem ocaso, este algo que jamais se põe. Assim, a possibilidade não poderia iniciar, por exemplo, a seguinte frase:
a possibilidade de existir deus […]
não; pois a possibilidade, em si, é divina. A possibilidade também é algo que passa despercebido, pois não nos damos conta da possibilidade das coisas; pelo contrário, enfatizamos só o impedimento delas. Se aprendi alguma coisa no méthodo, é que, não importa se a conquista de algo vai ou não ser bem sucedida, o que importa é a minha apropriação — minha fé — nesta possibilidade; e nesta apropriação, conquistar um momento, mínimo que seja, da minha vida — o mínimo talvez seja tudo que tenho, e ainda com muito esforço — e continuar neste perdurar é onde reside toda minha chance de ver o divino — no mínimo espaço de tempo — no imediato [3].
Posto que a possibilidade, em si é divina, vem o corolário de que ela também é impossível, pois se ela é deus, e deus é impossível, a possibilidade é impossível. O divino é esmagador — não é preciso muito para chegar a isso — se fosse diferente, nós nos iluminaríamos sem tanto esforço ou preparo. Se a possibilidade é impossível, me parece também que ver na possibilidade o divino é, também, esmagador — após deparar-me com este pensamento, me sinto terrivelmente compromissada com cada momento de minha vida — a responsabilidade de que eu resgate dele o divino é minha e não dele — ele está lá e não precisa de mim para sair de lá ou até para continuar lá — como todo divino, velado — e, novamente, imediato.
O que mais me fascina, no entanto, é: como RES capta, num desenho, num objeto material, algo tão móvel quanto estas questões? Algo tão divinamente humano, algo tão constrangedor quanto a luta, fadada à ruína, de que atinjamos qualquer paz duradoura — e ao mesmo tempo, algo tão lindo quanto o fato desta luta ser realmente eterna — pois aqui, conquista e fracasso — crime e castigo — se identificam num movimento incessante — como o dor mar — de acreditar — desesperadamente — e paradoxalmente — tanto na sua ruína quanto na possibilidade de sair dela.
[1] Para os gregos, esconder-se não é o que entendemos hoje por esta palavra, mas tem relação com penetrar no oculto.
[2] Os pré-socráticos, pág. 124. Heidegger se debruçou ostensivamente sobre Heráclito para estudar a palavra alétheia, que, para os gregos, ia muito além do que achamos ser verdade hoje e relacionava-se com o movimento de velar e desvelar incessante, como as ondas do mar.
[3] Por mais que seja diverso, o divino é, com certeza, aquilo que, de forma mais intensa possível, nos dá a sensação de estar vivos. Isso é o imediato. Mas a pura intensidade, como evento contínuo, é “impossível”; seria esmagadora.
Roberto Calasso, Os deuses e a literatura, Companhia das Letras, pág. 28
CCS, 1 de fevereiro de 2019